O novo governo do Montenegro: um desafio à hegemonia ocidental nos Bálcãs ?

Após a histórica vitória de forças de oposição na eleição parlamentar realizada em agosto, o Montenegro passou por um conturbado processo de formação de governo marcado por inquietações e disputas em torno da política externa do país.

Manifestantes em Podgorica, capital do Montenegro, celebram a vitória eleitoral da oposição (Imagem: Miloš Vujovic/Anadolu Agency)
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Por Gustavo Oliveira*

A ex-república iugoslava do Montenegro, localizada na costa Adriática dos Bálcãs, viveu um momento histórico no último dia 4/12. Pela primeira vez desde 1990, quando o multipartidarismo foi reinstituído no país que, àquela altura, ainda fazia parte da Iugoslávia, um governo não oriundo do Partido Democrático dos Socialistas (DPS) ou de sua antecessora, a Liga dos Comunistas do Montenegro (seção montenegrina do partido comunista iugoslavo), conseguiu ser formado.

O novo governo, que começou seus trabalhos em 7/12, é liderado pelo primeiro-ministro Zdravko Krivokapi?. Sua formação se deve à articulação das coalizões eleitorais Pelo Futuro do Montenegro (ZBCG, da qual Krivokapi? foi o líder), A Paz é a Nossa Nação (MNN) e Preto no Branco (CnB), que fizeram oposição ao DPS. A ZBCG, a MNN e a CnB, grupos ideologicamente bastante distintos entre si, haviam conquistado, em conjunto, a maioria dos votos na eleição parlamentar realizada em 30/8.

Além deste próprio caráter de novidade histórica, a ascensão do novo governo montenegrino também chamou grande atenção doméstica e internacionalmente por outro motivo: suas possíveis implicações em termos de política externa. Isto se deve a fatores como o histórico de posicionamentos anti-OTAN e simpáticos à Rússia de membros da ZBCG, a mais forte das três coalizões acima mencionadas em termos eleitorais (32,55% dos votos e 27 mandatos parlamentares, frente a 12,53%/10 da MNN e 5,54%/4 da CnB). Tais posicionamentos vão na contramão da postura fortemente pró-ocidental dos governos liderados pelo DPS, que sob seu líder e atual presidente do país, Milo ?ukanovi?, levaram o Montenegro à OTAN e a fortes atritos com o governo russo em meio às tensões entre Moscou e as potências ocidentais nos últimos anos.

Entre os principais nomes da ZBCG, estão os políticos Andrija Mandi? e Milan Kneževi? (este último, eleito deputado). Ambos fazem parte da liderança da Frente Democrática (DF), grupo político que constituiu o núcleo da ZBCG e que se notabilizou como a principal organização de oposição ao DPS de ?ukanovi? nos últimos anos. Além disso, Mandi? e Kneževi? são adeptos da ideologia da identidade sérvia do Montenegro, que celebra a proximidade histórica do país com a Sérvia. À exceção do breve período de ocupação e partição da Iugoslávia promovida pelas potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, Sérvia e Montenegro estiveram unidos em um mesmo Estado de 1918 a 2006. Muitos montenegrinos se consideram parte da nação sérvia de maneira mais ampla, a ponto de quase 30% da população do Montenegro ter se autodeclarado como sérvia no censo de 2011, o último publicado no país.

Principalmente em suas vertentes mais nacionalistas, esta ideologia frequentemente apresenta traços como o posicionamento político russófilo, oriundo de fatores como os períodos de apoio da Rússia a Sérvia e Montenegro ao longo da história destes países. Outro aspecto frequente desta identidade é a postura anti-OTAN. Isto se deve principalmente à atuação da aliança militar ocidental contra sérvios durante as guerras de desintegração da Iugoslávia nos anos 1990 – em particular, a intervenção da OTAN em 1999 contra a República Federal da Iugoslávia (RFI), formada por Sérvia e Montenegro, durante a Guerra do Kosovo.

Vladimir Putin ladeado por Milan Kneževi? (à esquerda na foto, com gravata azul listrada) e Andrija Mandi? (direita) durante a visita do presidente da Rússia à Sérvia em janeiro de 2019 (Imagem: DF).

Mandi? e Kneževi? estiveram à frente da campanha contrária à entrada do Montenegro na OTAN, oficializada em junho de 2017. A DF, apostando no alto índice de rejeição popular ao acesso do país à aliança, propunha um referendo nacional sobre a entrada ou não na OTAN. Em abril de 2017, este grupo político também liderou uma assembleia paralela de políticos montenegrinos que prometeram, caso chegassem ao poder, a revogação da lei que confirmou a adesão do Montenegro à aliança. A assembleia foi realizada simbolicamente em Murino, vilarejo atingido pelo mais mortífero ataque da OTAN ao Montenegro em 1999, que deixou seis civis mortos.

Em suas carreiras políticas, Mandi? e Kneževi? também se notabilizaram pelas articulações na Rússia, cujo governo se opôs e fez fortes críticas à entrada do Montenegro na OTAN. Neste contexto, seus partidos tornaram-se próximos do Rússia Unida, principal partido político russo, que apoia Vladimir Putin. Em suas visitas a Moscou, os dois políticos montenegrinos – que prometiam, caso chegassem ao poder, a abolição das sanções ocidentais adotadas pelo Montenegro contra a Rússia – chegaram a ser recebidos por parlamentares e pelo ministério de relações exeriores russos para discutir a situação política no Montenegro e a questão da OTAN.

Neste contexto, a DF passou a ser rotulada como uma marionete da Rússia pelo atual presidente Milo ?ukanovi?, que tem figurado no topo da política montenegrina desde os anos 1990 e se apresentado como um ferrenho líder pró-ocidental. Em maio de 2019, Mandi? e Kneževi?, em um contestado processo, foram condenados à prisão em primeira instância após a justiça montenegrina ter alegado a participação de ambos, em conjunto com agentes da inteligência russa e nacionalistas sérvios, em uma suposta tentativa de golpe de Estado anti-OTAN em 2016. Cabe mencionar, por fim, a presença na ZBCG de outros grupos e atores críticos da OTAN, como o Partido Popular Socialista (SNP) e o ativista anti-OTAN Marko Mila?i?.

O nacionalista sérvio-montenegrino Marko Mila?i?, deputado eleito pela ZBCG, ateia fogo à bandeira da OTAN no centro de Podgorica em abril de 2019 (Imagem: Marko Mila?i?).

Outro fator relevante a suscitar especulações sobre os possíveis novos rumos da orientação externa do Montenegro foi o papel político da Igreja Ortodoxa Sérvia (SPC), outro reduto do nacionalismo sérvio e da russofilia, como protagonista na oposição a ?ukanovi? e ao DPS. Maior congregação religiosa no Montenegro e, conforme pesquisas de opinião pública, uma das instituições mais bem avaliadas pela sociedade montenegrina, a SPC entrou em conflito aberto com o governo liderado pelo DPS no final de 2019 em reação a uma impopular lei que permitiria ao Estado tomar parte do patrimônio da Igreja. Contra a nova legislação, o ramo montenegrino da SPC impulsionou a maior onda de manifestações populares no Montenegro desde a chamada Revolução Antiburocrática do final dos anos 1980, uma massiva onda de protestos motivados pela situação econômica e por pautas nacionalistas sérvias na Iugoslávia socialista que, além de fortalecer Slobodan Miloševi? (ex-presidente da Sérvia e da RFI), contribuiu para levar o antigo grupo de Milo ?ukanovi? ao poder no Montenegro.

Em uma das manifestações em defesa da SPC, multidão se aglomera em torno do principal templo da Igreja em Podgorica (Imagem: Saborni hram Hristovog Vaskrsenja – Podgorica).

As manifestações assumiram forte caráter antigoverno e se estenderam até o contexto eleitoral. Em meio ao quadro de forte contestação ao governo do DPS, o alto clero da SPC no Montenegro teve envolvimento direto na conformação da ZBCG. Conforme Andrija Mandi?, a nomeação de Krivokapi? para a liderança da ZBCG foi uma condição da SPC para a coalizão obter o apoio da Igreja. Membros da SPC no Montenegro, como seu líder Amfilohije Radovi? (falecido no último dia 30/10 em decorrência de complicações da Covid-19), também participaram de negociações de formação do governo das três coalizões que obtiveram a maioria eleitoral conjunta. Em sua carreira, o influente arcebispo Amfilohije notabilizou-se, além do discurso nacionalista e conservador, por críticas às sanções contra a Rússia e por equiparar a atuação da OTAN nos Bálcãs à das potências nazifascistas. Amfilohije também era apontado em pesquisas de opinião como a segunda personalidade pública mais bem avaliada pela sociedade montenegrina – atrás apenas do Vladika (bispo) Joanikije Mi?ovi?, outro líder da SPC no Montenegro. Em vista do prestígio e da influência da SPC, a posição da Igreja foi tida como fator fundamental para assegurar legitimidade e apoio popular à oposição (em especial, à ZBCG) no contexto eleitoral.

Às vésperas da eleição parlamentar de agosto, Amfilohije Radovi? convocou os montenegrinos às  urnas em defesa dos “objetos sacros” da SPC (Imagem: Ostrog Tv Studio).

Diante deste quadro, alarmes foram acendidos por analistas e atores políticos ocidentais e pró-ocidentais nos Bálcãs, com inquietações que pautaram o envolvimento dos EUA e das potências ocidentais na política pós-eleitoral do Montenegro. A diplomacia norte-americana, por exemplo, na figura da embaixadora em Podgorica, Judy Rising Reinke, e do representante para os Bálcãs Ocidentais, Matthew Palmer, expressou a expectativa de que o novo governo montenegrino continuasse a orientação pró-ocidental e de que fosse composto por quadros adequados para tanto.

As declarações de Reinke e Palmer vieram em meio a disputas entre a DF e forças de perfil pró-ocidental sobre a composição dos ministérios relacionados às áreas de política externa, defesa e segurança. Nesse sentido, lideranças do Ação Reformista Unida (URA), partido favorável ao ingresso do Montenegro na OTAN e principal componente da coalizão CnB, mantiveram frequentes contatos com embaixadas ocidentais no Montenegro. Dritan Abazovi?, o jovem líder do URA/CnB, ressaltou a importância de afastar da área de segurança nacional quadros que pudessem afetar negativamente a orientação pró-ocidental do Montenegro, e afirmou, ainda, que havia veracidade em relatos na imprensa montenegrina sobre “claras recomendações” das diplomacias alemã, britânica e norte-americana nesse sentido.

Nesse contexto, a DF questionou publicamente um ultimato que Krivokapi? teria recebido do “fator estrangeiro” para que membros do grupo não assumissem postos no governo, insinuando que os EUA exerceram pressão sobre o primeiro-ministro nesse sentido. O ultimato, conforme carta aberta da DF à embaixadora Reinke, foi comunicado ao grupo exatamente após Krivokapi? ter participado de uma reunião na embaixada estadunidense. À época desta polêmica, o primeiro-ministro chegou a afirmar que o novo governo teria um “nível de reputação mais baixo” e problemas de aceitação junto a “relevantes instituições internacionais” caso Mandi? e Kneževi? o integrassem. A diplomacia russa, que manteve contatos com Mandi? e Kneževi?condenou a percebida ingerência dos EUA no processo de formação do novo governo montenegrino.

Após três meses de conturbadas discussões, marcadas por insatisfações e querelas públicasentre as forças que o apoiariam, o governo Krivokapi? só foi viabilizado graças a um fator: o forte desejo por mudanças e pela superação da hegemonia de ?ukanovi?/DPS na vida política montenegrina compartilhado pela pequena maioria parlamentar (41 mandatos de um total de 81) das três coalizões que, em conjunto, venceram a eleição de agosto.

No que tange à política externa, a publicação do programa do governo Krivokapi? veio para, teoricamente, encerrar de uma vez por todas as incertezas e disputas que alimentaram especulações desde o dia 30/8. Diferente do que parte destacada da base de apoio político e social do novo governo leva a crer, o programa afirma como uma prioridade da política externa do Montenegro o cumprimento das obrigações assumidas perante a OTAN por meio da entrada do país na aliança. O acordo de ingresso na OTAN, aliás, já contém sérios entraves para uma possível tentativa de saída da aliança, tornando tal ação algo muito difícil para além da retórica. O programa do governo Krivokapi?, por fim, também menciona como outra prioridade da política externa do Montenegro o acesso à UE – um objetivo cuja aceitação social no país, como ilustra o apoio de partidos como os de Andrija Mandi? e Milan Kneževi?, é tradicionalmente muito mais ampla do que a da filiação à OTAN.

O programa do novo governo reforça um acordo assinado pelos líderes das três coalizões no início de setembro, o qual, além de enfatizar os compromissos com a OTAN e o acesso à UE, descartou a revogação do reconhecimento da independência do Kosovo por parte do Montenegro. Como que elaborado exatamente para acalmar as potências ocidentais, este documento também foi assinado, simbolicamente, nas línguas inglesa e alemã. Desse modo, ainda que representantes das novas forças no poder (incluindo os de maior perfil pró-ocidental) tenham anunciado ou mesmo cobrado boas relações com a Rússia, isto dificilmente ocorrerá mediante uma ruptura da política externa montenegrina com os fundamentos do relacionamento com as potências ocidentais e as estruturas por elas lideradas. Tal direcionamento potencialmente implicaria, inclusive, a continuidade, ainda que parcial, das sanções contra a Rússia, visto que o alinhamento com a política externa da UE, que introduziu este tipo de medida originalmente, é um requisito para a entrada no bloco.

As escolhas de quadros de Krivokapi? também vão largamente ao encontro destes elementos. Dritan Abazovi? foi nomeado o único vice-primeiro-ministro, cargo a partir do qual exercerá supervisão sobre o setor de segurança. O Ministério de Relações Exteriores, por sua vez, será chefiado por ?or?e Radulovi?, diplomata com experiência neste órgão que havia trabalhado sob os governos liderados pelo DPS. Já o Ministério da Defesa será dirigido pela acadêmica Olivera Injac, que havia trabalhado em órgãos de segurança montenegrinos durante os governos do DPS nos anos 2000. Injac também já atuou no Conselho Atlântico do Montenegro, organização que promove o papel da OTAN nos Bálcãs. As nomeações de Radulovi? e Injac alinham-se ao pretenso caráter tecnocrático do “governo de especialistas” de Krivokapi?, cuja primeira semana de trabalho foi marcada por diversos encontros com representantes das potências ocidentais – sugerindo, novamente, esforços de harmonização política com estas últimas.

O premiê Zdravko Krivokapi? (esquerda) e seu vice, Dritan Abazovi? (direita), à frente do gabinete de ministros do novo governo montenegrino (Imagem: Savo Prelevi?/Vijesti).

Apesar da ascensão de forças que poderiam, em tese, trazer sérias rupturas na política externa do Montenegro, portanto, o peso das potências ocidentais nos Bálcãs, a julgar pelos elementos trazidos acima, se fez sentir com vigor ao longo do processo de formação do novo governo montenegrino. Com um governo nos EUA que, sob Joe Biden, deve buscar revigorar a coesão com os aliados na OTAN e na UE e assumir uma postura ainda mais combativa frente à influência global da Rússia, as pressões por alinhamento sobre o Montenegro não deverão cessar.

Ao mesmo tempo, uma expressiva fração da sociedade montenegrina, como indica o resultado eleitoral da ZBCG, espera uma genuína melhoria de relações com uma Rússia que no passado já demonstrou indisposição com certas decisões de política externa adotadas pelo Montenegro. Não se pode descartar, nesse sentido, possíveis descontentamentos populares e o fortalecimento de dissensos na coalizão governamental ocasionados por expectativas dissonantes sobre a política externa do país. Resta observar, agora, como as novas lideranças montenegrinas manobrarão diante destes latentes desafios.

*Gustavo Oliveira é Doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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