Os últimos acontecimentos em Porto Príncipe expõem as limitações dos processos de intervenção militar para a estabilização e pacificação. As revoltas de julho demonstram, mais uma vez, que as cidades se constituem como importantes espaços de manifestação das relações entre forças globais e locais, sejam de conflito ou de cooperação.
Por João Fernando Finazzi
No dia 6 de julho deste ano, enquanto Brasil e Bélgica disputavam uma vaga na semi-final da Copa do Mundo de futebol, o governo do Haiti anunciou, em rede nacional de televisão, que iria reduzir o subsídio que mantém ao combustível. Parte de um acordo feito com o FMI em fevereiro em troca do acesso a um fundo de US$ 96 milhões em condições especiais, a decisão aumentaria os preços da gasolina, diesel e querosene em torno de 44%. A decisão foi o estopim, no entanto, de uma grande revolta que atingiu as maiores cidades do país, especialmente a capital Porto Príncipe.
Durante a sublevação, que durou cerca de três dias, houve casos de linchamento, lojas foram saqueadas e incendiadas, estradas foram bloqueadas e vôos foram suspensos. A embaixada dos Estados Unidos requisitou a presença de soldados e se somou a de França e Canadá ao emitir alertas e fechar o seu funcionamento. O comércio com a República Dominicana, que divide com o Haiti a Ilha de São Domingos, foi paralisado. Até mesmo o presidente da Câmara dos Deputados, Gary Bodeau, chegou a ameaçar que consideraria o governo como vago caso não houvesse uma retirada da decisão sobre o subsídio.
Estas imagens geradas pela crise destoam de modo significativo daquelas frequentemente difundidas, no Brasil, pelo grupo que poderíamos dizer ocupar, junto com a “elite do poder”, aquilo que C. Wright Mills chamaria dos “postos de comando estratégicos da estrutura social”: alguns diplomatas, militares, membros de ONGs e estudiosos. As cenas contrastam com uma narrativa hoje dominante de que os esforços da Minustah desenvolvidos ao longo de 13 anos teriam construído um Haiti em que isso não ocorreria, uma vez que a missão teria sido um sucesso “nos seus próprios termos”. Ou seja, teria concretizado a garantia de um ambiente seguro, pacífico, e estável do ponto de vista político e social.
Esta construção, convém lembrar, foi feita por meio de táticas de guerra de contra-insurgência urbana que consolidaram um golpe de Estado contra o presidente Jean-Bertrand Aristide - pois só ocorreu, mesmo com pedidos anteriores, depois de ele ter deixado o Haiti. Daí a dificuldade, que ainda hoje persiste, com que alguns juristas se deparam ao tentar precisar com clareza o tipo de direito vigente durante o contexto da intervenção no Haiti (como Siobhán Wills, do Instituto de Justiça de Transição da Universidade de Ulster, e Todd Howland, atual representando do Alto Comissariado para Direitos Humanos da missão da ONU no Congo).
Foi somente alguns dias após o presidente Jovenel Moïse e o primeiro-ministro Jack Guy Lafontant anunciarem o recuo da medida que as manifestações lentamente se esvaíram. Contudo, a crise que se instalou no governo e os próprios acontecimentos do início de julho suscitam uma série de questionamentos.
1. Alguém poderá indagar sobre o que faziam os policiais internacionais da missão da ONU (Minujusth) entre o momento da declaração do governo haitiano e o dia 9. Foi neste dia quando o Core Group (formado pelos embaixadores dos Estados Unidos, França, Canadá, Brasil e Alemanha e representandes da Espanha, ONU, UE e OEA) emitiu comunicado assegurando o “Haiti de seu apoio à estabilidade”. Ainda no dia 9, o Forum Econômico do Setor Privado manifesta a exigência da saída do presidente e do primeiro ministro. Somente a partir deste momento, ao que indica, as Formed Police Units (tropas da ONU com cerca de 140 policias treinados e equipados para atuar em conjunto) teriam começado a agir.
2. Uma outra questão que inevitavelmente deve ser feita é: por que, diferentemente da declaração do Core Group, em que não há nenhuma menção ao governo haitiano e à polícia, o pronunciamento do Conselho de Segurança emitido no dia 12, após o final dos protestos, manifesta apoio, agora, ao governo, e reconhece o “papel importante da Polícia Nacional Haitiana, com o suporte da Minujusth, em proteger a população civil e manter a ordem pública”?
3. Ao levar essa declaração em conta, no entanto, é preciso perguntar: por que a mesma Polícia Nacional Haitiana – treinada pelos maiores experts do mundo, financiada em grande medida pelos Estados Unidos, sob constante vigilância internacional e objeto declarado da ação de reconstrução da missão da ONU – não foi avisada com antecedência sobre a data exata do anúncio do governo? Conforme relatou um “alto membro do seu Estado-Maior” para o jornal Le Nouvelliste no dia 10 e confirmado pelo diretor-geral da Polícia Michel-Ange Gédéon em depoimento ao Senado no dia 24, a corporação só foi avisada na noite da véspera. Essa demora teria feito, segundo os policiais, com que ela estivesse, no momento, com 40% do efetivo da área metropolitana de Porto Príncipe e sem combustível e veículos tidos como suficientes.
4. Por fim, embora tenha passado despercebido na cobertura da imprensa brasileira, representaria mero detalhe o fato de que as ações mais organizadas da revolta tiveram como alvo não somente o Palácio Nacional (onde foi de fato reprimida), mas também os luxuosos hotéis Best Western e Royal Oasis, em Pétionville, rico bairro da capital?
Na análise, precisamos distinguir as motivações daqueles que realizaram os ataques daquelas que poderíamos atribuir aos seus dirigentes, ou seja, do grupo que formula cotidianamente, por meio de um esforço sistemático, um sentido e uma direção específicos às ações sociais. Não podemos esquecer, ainda, que as chamadas “gangues” urbanas haitianas se ligam a elites políticas e econômicas, servindo, em alguns momentos, como bases militantes e/ou forças de achaque contratáveis, e que também se submetem, de certo modo, a complexas dinâmicas de poder que perpassam o local e o global.
Portanto, aparenta também não ter importância marginal na esteira dos acontecimentos de julho o incêndio no Tribunal de Paix em Petit Goâve. O tribunal foi uma das iniciativas de “reforma do setor de segurança” da “comunidade internacional”. Construído após o terremoto de 2010, seu projeto foi executado pela Organização Internacional da Migração a partir de um financiamento feito pela Minustah.
Se foi plantada há muito tempo a semente que tornou os hotéis do Haiti o espaço onde são tomadas algumas das decisões mais importantes que afetam a vida, a morte, o lucro e a penúria no país caribenho, ela tem sido vigorosamente regada pela “comunidade internacional” nos últimos anos, sob plena consciência dos atores que lá fazem Política. Cientes disso, em fevereiro de 2006, durante as primeiras eleições sob a presença de tropas da Minustah, os partidários de René Préval, sob o pretexto da existência de fraudes no pleito, invadiram o Hotel Montana. Era lá onde estavam alojados, segundo o então representante da OEA no país Ricardo Seitenfus (“Haiti – Dilemas e Fracassos Internacionais”, 2014: 185), os “mentores estrangeiros da imberbe democracia haitiana”. Em outubro de 2009, por exemplo, o Hotel Karibe, também em Pétionville, hospedou uma conferência que contou a presença do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, então representante especial da ONU no Haiti, representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do governo haitiano e centenas de investidores internacionais. [caption id="attachment_1622" align="alignright" width="277"] “A direção geral da PNH deplora e condena a onda de paixões do dia 7 de julho de 2018, a pilhagem e o incêndio de alguns hotéis e casas de comércio”, diz nota assinada pelo Diretor Geral da PNH Michel-Ange Gédéon[/caption]
Não são recentes, também, as perturbações da relação entre o governo e a ONU. Em 26 de fevereiro, por exemplo, no dia seguinte à assinatura do referido acordo com o FMI, o embaixador haitiano na organização foi convocado para consultas. Tratou-se de um protesto após a então chefe da Minujusth Susan D. Page (ex-embaixadora dos EUA no Sudão do Sul) manifestar apoio às investigações de corrupção ao redor do acordo PetroCaribe entre o Haiti e a Venezuela, e criticar a falta de avanços num caso de violações de direitos humanos que teriam sido cometidas pela Polícia Nacional Haitiana.
Com relação aos acontecimentos de julho, a inação, a ser comprovada, das polícias internacionais, assim como a posição do Core Group (ao suprimir do seu comunicado a defesa do governo haitiano) e a demora em emiti-la podem vir a indicar que possivelmente houve um conflito de interesses no seio da “comunidade internacional” que age no Haiti, o FMI ocupando um dos lados da mesa. No entanto, diferentemente do episódio do Hotel Montana, não eram os “mentores estrangeiros” do FMI, até onde se tem notícia, que estavam nos hotéis Best Western e Royal Oasis, mas cidadãos norte-americanos. E mesmo no dia 12, o FMI manifestou contínuo apoio ao governo e à retirada do subsídio do combustível, agora por meio de uma adoção gradual – sem que houvesse uma nova rodada de revoltas.
Retirada a hipótese do conflito dentro da “comunidade internacional”, resta apenas uma. E, ao que parece, o presidente Jovenel Moïse entendeu o recado: o 1º ministro teve que sair.