Dívida de caruru: não nego, pago quando puder

Resolvi que ano que vem eu mesma hei de cozinhar para São Cosme e São Damião; como diz Caymmi, quem quiser vatapá que procure fazer

Pintura síria retratando Cosme e Damião do século 18. Fonte: wikimedia commons
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JOANA RIZÉRIO

Não sou católica, mas como além de baiana eu sou gêmea, não tive como escapar a ter alguma adoração por São Cosme e São Damião. Na Bahia, irmãos de uma mesma barriga são protegidos por esses santos. Na minha casa há uma enorme imagem deles atrás de um castiçal improvisado onde, regularmente, essa herege que vos escreve deixa uma vela acesa.

Durante este mês de setembro, só se fala nesses gêmeos que simbolizam a Bahia. Mas, mais uma vez, minha família vai ficar devendo o caruru que deveria dar em homenagem a eles. Não nos planejamos por mais um ano e não reverenciaremos a contento os sagrados irmãos médicos que foram degolados no século VI. Uma pena.

Mais uma vez, minha família vai ficar devendo o caruru que deveria dar em homenagem a Cosme e Damião. Não nos planejamos por mais um ano e não reverenciaremos a contento os sagrados irmãos médicos que foram degolados no século VI. Uma pena

Pena porque tenho certeza que no dia em que abrirmos nossa casa para crianças e amigos comerem vatapá, caruru, galinha de xinxim, rapadura, pipoca, banana frita, farofa de dendê, bala de mel e um sem número de outras delícias, coisas muito boas começarão a acontecer. Vou dar um exemplo.

No ano retrasado, eu e minha gêmea Lígia fomos ajudar a preparar um caruru feito na intenção da gestação difícil do sobrinho de minha amiga Illa Benício. De acordo com os avós Eliene e Roaleno, nada como o axé de um par de bivitelinas. Pense num fim de gravidez plácido e numa criança que nasceu linda, gostosa, esperta, risonha, vitaminada e perfeita?

Então, quando finalmente dermos o nosso caruru, tenho certeza que acharei na calçada do Paço um bilhete premiado e viajarei com minha mãe para a Rússia; com minha dinda, para a China; com minhas irmãs, para Londres; com minhas amigas, para Malta, e fundarei um jornal cheio de cabeças caras como a de André Uzêda.

Colocarei de volta todos os dentes que fugiram da boca de meu pai e estudarei direito, medicina, letras, árabe, mandarim e fisioterapia. Virarei mecenas e sairei apoiando a arte de todo mundo que achasse bom ou simplesmente honesto. Pagarei um salário perene para minhas amigas Ana e Maíra viverem só de escrever.

Como nem toda graça é dinheiro, minha mãe se aposentará antes do meio-dia de ontem, fará pilates todas as manhãs e, um dia, pegará um carro de aplicativo cujo motorista seja o jogador de futebol Raí ou o cantor pernambucano Junio Barreto, que a pedirão em casamento. Naturalmente, ela recusará, mas rirá e gostará da corte de seus ídolos.

Entretanto, para isso tudo acontecer, é preciso cortar muito quiabo e oferecer aos outros, e não será nesse ano que isso acontecerá. É triste, mas em 2024, parece que eu não verei sequer a complicada cor do dendê. Nada de graça alcançada na loteria e descanso. Se, pelo menos, alguém ler isso e ainda estiver fazendo caruru, tenha dó e me chame. Eu como rezando.

Quando finalmente dermos o nosso caruru, tenho certeza que acharei na calçada do Paço um bilhete premiado e viajarei com minha mãe para a Rússia; com minha dinda, para a China; com minhas irmãs, para Londres; com minhas amigas, para Malta, e fundarei um jornal cheio de cabeças caras como a de André Uzêda

Resolvi que ano que vem eu hei de cozinhar para São Cosme e São Damião. Cansei de esperar minha mãe fazer isso. Sempre achei que o certo era ela organizar o evento, já que é ela a mãe das gêmeas e tem que agradecer pela glória de ter duas monstrinhas saudáveis. Mas, como diz Caymmi: quem quiser vatapá, que procure fazer.

Houve um caruru feito para mim e para Lígia uma única vez. Foi antes de nascermos ou no nosso aniversário de um ano, nunca consegui confirmar a informação. Não há fotos, só uma boa história que Tia Teca protagonizou quando estava na Feira de São Joaquim a comprar ingredientes como castanha de caju, cebola e camarão seco.

Ela queria também comprar um baú de vime para colocar os presentes que íamos receber e achou um vendedor com lindos itens, mas eram todos caros demais. Tia Teca só tinha dinheiro para comprar um, talvez um e meio, e pediu desconto para levar dois, mas o homem não deu. Ficaram debatendo um tempo, mas o homem era ruim de jogo.

Minha tia apelou: disse que os baús eram para um caruru de gêmeas, mas o homem era evangélico e falou que tava repreendido. No fim, Tia Teca teve que levar para a nossa festa apenas um. Ao abrir o baú, porém, encontrou um outro dentro dele. Não se pode brincar com a magia mabaça de setembro, vendedor pão-duro! Ano que vem o caruru não me escapa.

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