SOCIALISTA MORENA

Ao contrário do Brasil, nos EUA defender o aborto pode levar Kamala à vitória

Chamar de "abortista" não cola na terra do tio Sam: pesquisas mostram que 63% dos norte-americanos são favoráveis à interrupção da gravidez indesejada

Kamala Harris em evento pró-aborto em fevereiro. Foto: Lawrence Jackson/Casa Branca
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CYNARA MENEZES

Um dos momentos mais emocionantes da convenção Democrata que sagrou Kamala Harris como candidata à presidência, na última terça-feira, 20 de agosto, em Chicago, foi quando a jovem Hadley Duvall, de 22 anos, subiu ao palco para contar sua história. Hadley foi estuprada pelo padrasto aos 12 anos, engravidou e pôde abortar. Desde então, de forma corajosa, passou a contar sua história publicamente, advogando pelo direito da mulher de interromper uma gravidez não desejada.

"Eu era a típica garota norte-americana. Capitã do time de futebol, rainha das cheerleaders e fui estuprada pelo meu padrasto após anos de abuso sexual", contou. Na plateia, mulheres choravam. "Aos 12, fiz meu primeiro teste de gravidez, que deu positivo. Foi a primeira vez que me disseram: 'você tem opções'. Não posso imaginar o que seria não ter uma escolha, mas hoje isso é realidade para muitas mulheres e meninas no país porque Donald Trump conseguiu proibir o aborto."

"Trump disse que o banimento do aborto foi 'uma coisa bonita'", continuou. "Mas o que há de tão bonito em uma criança carregar a criança de seu próprio pai? Há outras sobreviventes como eu que não têm escolha. E eu quero que vocês saibam que nós estamos vendo vocês, que nós estamos ouvindo vocês."

Quando era presidente, em 2020, Trump conseguiu anular na Suprema Corte uma decisão de 1973, Roe vs Wade, que legalizou o aborto em todos os 50 Estados do país. Reverter a decisão e legalizar novamente o aborto nos EUA virou promessa de campanha de Joe Biden; com Kamala à frente da disputa, o tema se tornou ainda mais central. Os democratas estão chamando novembro, mês da eleição, de ROEvember, em referência à restauração da legislação anterior. Por lá, chamar uma mulher candidata de "abortista" não cola.

A convenção Democrata também apresentou um vídeo com a história de Amanda Zurawski, que sofreu um choque séptico ao ter o aborto de uma gravidez com complicações negado por causa da reversão de Roe vs Wade. Mesmo sabendo que o bebê não sobreviveria, os médicos se recusaram a fazer o procedimento. "Eu fui punida por três dias tendo que esperar que meu bebê morresse ou eu morresse, ou ambas", diz Amanda. No vídeo, Donald Trump aparece se gabando por ter derrubado a decisão e defendendo que deveria haver punição para a mulher que aborta.

Só que, para azar do extremista de direita, e ao contrário do que ocorre no Brasil, o direito ao aborto é bem visto na sociedade norte-americana. Segundo uma pesquisa divulgada em maio pelo Pew Research Center, 63% dos norte-americanos aprovam o aborto em todos os casos ou na maioria deles, enquanto 36% consideram que deveria ser ilegal em todos os casos ou na maioria deles. Entre os religiosos dos EUA, apenas os cristãos conservadores, fortemente alinhados com o trumpismo, são contra a interrupção da gravidez; católicos e protestantes não-conservadores são favoráveis.

Ao que tudo indica, ter anulado Roe vs Wade foi um tiro no pé para Donald Trump. Tanto é que os republicanos estão escondendo o tema nos eventos de campanha, enquanto os democratas trazem o aborto à baila o tempo todo. O vice de Trump, J.D. Vance, é um radical antiaborto que já comparou a interrupção da gravidez ao assassinato, mesmo que seja em casos de estupro e pedofilia, como defendem os bolsonaristas aqui. Mas recentemente deu declarações dizendo que Trump recuou da promessa de banir a mifepristona, um dos dois medicamentos vendidos como abortivos no país.

Ao que tudo indica, ter anulado Roe vs Wade, a decisão que permitia o aborto no país, foi um tiro no pé para Trump. Tanto é que os republicanos estão escondendo o tema nos eventos de campanha, enquanto os democratas trazem o aborto à baila o tempo todo

A postura conservadora do ex-presidente de extrema direita contrasta com a defesa veemente que Kamala Harris faz da liberdade reprodutiva. Em março, enquanto aqui estávamos às voltas com fundamentalistas que querem transformar pedófilos e estupradores em pais de família, Kamala se tornava a primeira vice-presidenta da história a visitar uma das clínicas que realizam abortos no país (Planned Parenthood), no Estado de Minnesota. No comício em Milwaukee na própria terça-feira, a candidata democrata voltou com toda carga ao tema.

"Ainda ontem, quando foi questionado se tem algum arrependimento sobre acabar com Roe vs Wade, Donald Trump, sem nem sequer um momento de hesitação –você podia achar que ele refletisse sobre isso ao menos por um segundo–, disse que não, nenhum arrependimento", disse Kamala. "Eu acredito que mau comportamento deve resultar em consequências. Agora nós iremos garantir que ele encare uma consequência e ela estará nas urnas em novembro."

Se Kamala ganhar usando a legalização do aborto como bandeira, tomara que sirva de inspiração para os políticos e as políticas brasileiras começarem a encarar o tema de outra maneira, sem medo. Utilizar o depoimento de vítimas de estupro e pedofilia que tiveram seus abortos impedidos pela extrema direita, como foi feito lá, é uma estratégia que pode muito bem ser utilizada aqui. Nem tudo que vem dos EUA é ruim. Legalização do aborto e da maconha é algo que merece ser replicado –e esta é justamente a parte que os que batem continência para a bandeira norte-americana não querem imitar.