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4e20: hora de fumar um e sair para treinar

Que lombra que nada: nos EUA, onde a maconha é legalizada, cada vez mais gente tem associado a canábis às atividades físicas

Montagem com o pin do Snoop Dogg nas Olimpíadas
Escrito en BLOGS el

POR DIONIZIO BUENO

Daniel colocou sua roupa esportiva, preparando-se para ir correr. Havia uma dor na lombar o rondando, precisava ficar de olho. Uma fisioterapeuta, um amigo educador físico e a sua própria experiência já lhe haviam mostrado que o alívio dessa dor não dependia de remédio, muito menos cirurgia, mas apenas de ele conseguir manter uma boa postura corporal.

Estava também um pouco preocupado com a apresentação de um projeto que faria logo mais. Talvez fosse mais sensato ligar logo o computador, sentar na cadeira e trabalhar até se sentir satisfeito com o material que tinha para apresentar. Mas enfim, decidiu manter o treino. Pronto para sair, acendeu um baseado, deu dois ou três tragos e foi para a rua.

Pessoas que fumam um antes da academia relatam que a maconha ajuda a aliviar a ansiedade gerada por expectativas de perfórmance ou metas de perda de peso, fatores que levam muita gente a viver o treino como obrigação e castigo. Após fumar, simplesmente passam a curtir estarem ali praticando

Caminhando em direção à área verde onde costumava correr, observou como o sol iluminava a rua ainda molhada da chuva. Reparou que o jardim de uma casa em seu caminho diário estava todo florido. Parou para olhar a alegria de uma menina na cadeirinha da bicicleta, tomando vento na cara ao passear com a mãe. Percebeu que estava olhando mais as pessoas nos olhos.

Enquanto aquecia, teve subitamente a ideia de um ótimo argumento para usar na apresentação de seu projeto. Sentiu-se mais seguro, corrigiu a postura. Respirou fundo, olhou o relógio e começou a correr. Foi só ao final de sua prática, já quase chegando de volta em casa, que ele se deu conta de que a dor nas costas não tinha dado o mais remoto sinal naquele dia.

A história de Daniel, personagem fictício inspirado em relatos de amigos e na minha própria experiência (sobretudo com dores lombares), ilustra uma prática que parece estar se popularizando ultimamente – ou, pelo menos, vem-se falando mais sobre o assunto: associar maconha à atividade física.

Peraí! O barato do maconheiro não é fumar um para depois ficar sem fazer nada, rolando no sofá e passando uma tarde inútil na frente de um netflix da vida? A primeira coisa que me agrada muito nessa história é que ela contraria estereótipos e, cada vez que isso acontece, aumenta minha esperança na humanidade

Mas, peraí! O barato do maconheiro não é fumar um para depois ficar sem fazer nada, rolando no sofá e passando uma tarde inútil na frente de um netflix da vida? A primeira coisa que me agrada muito nessa história é que ela contraria estereótipos e, cada vez que isso acontece, aumenta minha esperança na humanidade.

Veja, se o barato, na verdade, é fumar para fazer coisas boas, e muita gente acha exercício algo muito prazeroso, essa combinação sempre esteve pronta para ser descoberta, certo? Certíssimo, e muita gente que conheço já combina canábis e exercício faz tempo.

E daí vem a segunda coisa que gosto muito nessa história. Diversos relatos indicam que a canábis ajuda também as pessoas que não curtem exercício, que veem nele uma coisa sacal, sofrida ou angustiante, a quebrar o bloqueio e mudar sua percepção. O resultado é que a atividade física passa a ser –ou volta a ser– uma experiência prazerosa. Como, aliás, nunca deveria ter deixado de ser.

O corpo humano foi feito para a atividade, não para a cadeira. O movimento é, sim, uma fonte natural de prazer. Além de trazer relaxamento físico e mental, o exercício inunda o organismo de endorfinas que, além de serem mecanismos fisiológicos da sensação de prazer, ajudam a contrabalançar adrenalina, cortisol e tantas outras substâncias que o organismo produz em resposta a uma desavença de trânsito, ao esporro de um chefe, a uma conversa com a operadora de telefonia e a tantas situações da vida cotidiana sem sentido que muita gente leva hoje. Não é por outro motivo, aliás, que a epidemia de depressão segue cada vez mais firme – e lucrativa, para a indústria da doença.

A vida sedentária está tão incorporada que muita gente, mesmo morando perto da praia, se esquece em seu dia a dia da verdade óbvia que está nessa plaquinha. Foto: Dionizio Bueno

 

Assim, ao ajudar as pessoas a fazerem exercício, a canábis se revela uma ferramenta de saúde pública. Voltaremos a este aspecto, mas olhemos antes algumas histórias que estão acontecendo em lugares onde a erva é legalizada.

Pessoas que fumam um antes de ir para a academia relatam que ela ajuda a aliviar a ansiedade gerada por expectativas de perfórmance ou metas de perda de peso, fatores que levam muita gente a viver o treino como obrigação ou mesmo castigo. Depois de fumar, simplesmente passam a curtir estarem ali praticando. Em vez dos complexos e pensamentos obsessivos sobre a aparência do próprio corpo, o foco se volta para o exercício e as sensações físicas boas provocadas pelo movimento.

Outro aspecto bastante mencionado é que a erva ajuda a estar no momento presente, desviando a atenção, durante a prática, de questões de trabalho ou listas de afazeres. Praticantes contam que os pensamentos acelerados diminuem, presta-se mais atenção à respiração e ao corpo, sentindo os músculos e apreciando as próprias capacidades. Além disso, se conectam melhor com a música, se houver. Resumindo: os treinos passam a ser muito mais divertidos.

Nos EUA, há profissionais e grupos orientando o uso da erva para a prática esportiva. Uma academia online de Los Angeles oferece sessões guiadas em que o primeiro exercício é acender o baseado (recomendam não fumá-lo inteiro)

Há explicações fisiológicas para isso. Os canabinóides presentes na erva estimulam os receptores de neurotransmissores relacionados a felicidade e satisfação. Têm também o efeito de aquietar partes do cérebro que alimentam o ego, favorecendo um estado mental mais na linha do ‘siga o fluxo’ e tornando o treino menos estressante. Ao produzir relaxamento muscular, a canábis ajuda a aliviar sensações corpóreas desagradáveis que podem aparecer durante o treino.

É fato, porém, que nem todos se dão bem com a mistura. A canábis pode deixar a pessoa dispersiva, sonolenta ou confusa, comprometendo o foco no exercício. Pode também deixar a boca muito seca e acentuar a sensação de fome (esta parte é relativamente fácil e agradável de se resolver). Talvez seja uma questão de encontrar a dosagem ideal, que varia conforme a pessoa. De qualquer forma, médicos salientam que é preciso cuidado especial ao pensar em usá-la em qualquer situação que envolva riscos, pois existe possibilidade de haver queda de pressão, tontura ou perda de equilíbrio. Assim como álcool, café, açúcar ou qualquer substância alteradora de consciência, a canábis deve ser usada com critério.

O uso recreativo da canábis é legalizado em metade dos estados norteamericanos. Lá ela pode ser facilmente encontrada em diversas apresentações: in natura, para fumar ou vaporizar; na forma de óleo para pingar na boca ou para usar com o vaporizador; em pastilhas comestíveis, com várias opções de dosagem; e há também loções e cremes para uso tópico, que podem ajudar a aliviar a dor ou a rigidez muscular decorrente de um treino intenso –sem deixar a pessoa doidona.

A onda por ali é tamanha que há profissionais e grupos orientando o uso da erva para a prática esportiva. Uma academia online de Los Angeles oferece sessões guiadas em que o primeiro exercício é acender o baseado (recomendam não fumá-lo inteiro). A proposta é que o treino flua alegre e descontraído, sendo sobretudo um espaço para a troca de experiências.

Há também um grupo em São Francisco que reúne pessoas que curtem fumar, pedalar em bicicletas ergométricas e compartilhar material divertido sobre cultura da maconha. Para quem busca sensações mais específicas, é possível encontrar sistematizações listando as variedades da erva e seus efeitos mais comuns, visando o uso esportivo.

A academia também já entrou nessa roda. Uma pesquisa publicada na revista científica American Journal of Health Behavior acompanhou usuários e não usuários acima de 60 anos em um programa de atividade física de várias semanas, observando sua relação com o exercício. Logo apareceu uma tendência de as pessoas usuárias exercitarem-se com mais frequência, e ao final do programa os usuários mantinham, em média, quatro sessões de exercício por semana a mais do que o grupo de não usuários. Ao melhorar a relação da pessoa com o exercício e com o próprio corpo, a canábis favorece a continuidade da atividade física.

Além de comprovar que a erva não tem o efeito de aumentar a perfórmance física –o que ajuda a fundamentar um movimento para que ela seja retirada da lista de substâncias proibidas em exames de anti-doping–, um estudo da Universidade do Colorado revelou as principais motivações daqueles que fumam antes de treinar: 90% dizem que torna o treino mais prazeroso, 69% afirmam que diminui a dor e 57% dizem que aumenta a vontade de treinar.

Conforme a legalização avança em cada vez mais lugares, falar no assunto vai deixando de ser tabu. Décadas de proibição foram criando um viés que cegou parte da sociedade para os benefícios que a canábis pode trazer para a mente e para o corpo. Agora que as pessoas vão ficando mais à vontade para compartilhar suas experiências, usos que fogem dos estereótipos começam a aparecer mais amplamente. E assim, mais e mais gente começa a entender o que vem perdendo nesse tempo todo.

Ao ajudar pessoas a vencerem bloqueios contra atividade física, a erva facilita para elas o acesso aos inúmeros benefícios que o exercício traz para corpo e mente, quem sabe até desviando algumas dessas pessoas do caminho de um infarto ou uma depressão crônica. Só isso já deveria ser motivo suficiente para se olhar essa combinação com a devida seriedade. Essa turma animada que fuma para se cuidar está mostrando, literalmente na prática, mais um aspecto do potencial da canábis para a saúde pública.

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