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Sim, Nietzsche dançava: frase citada por Simaria poderia mesmo ter sido escrita por ele

Zoeira com a cantora traz embutidos dois velhos preconceitos: mulher bonita é burra e homens inteligentes não sabem dançar

Nietzsche dançando (imagem criada por inteligência artificial). Foto: reprodução twitter @halterofilosofo
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CYNARA MENEZES

A cantora sertaneja Simaria fez um post na rede tóxica de Elon Musk citando uma frase que é atribuída ao filósofo alemão Friederich Nietzsche há pelo menos duas décadas: "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música". Simaria foi zoada ("na verdade essa frase é de Clarice Lispector"), chamada de burra e ignorante, porque, segundo os especialistas de internet na obra de Nietzsche, o filósofo nunca disse isso. Será?

Na verdade ninguém sabe quem é o autor da frase. Ela circula pelo mundo desde o século 19, ora atribuída a Madame de Stäel, ora a Nietzsche, ora a "um antigo provérbio". Não foi só Simaria quem a atribuiu a ele, não. Procure no google e verá que, em qualquer idioma, em português, espanhol, inglês ou alemão, a frase é tida como se fosse de Nietzsche. E mesmo que não seja: é tão absurdo assim que uma frase sobre dançar seja atribuída a um filósofo? Não, especialmente a este em questão.

Nietzsche escreveu sobre dança e adorava a dança. Zaratustra, alter ego profeta do filósofo, foi definido por ele como dançarino: "Zaratustra, o dançarino, o leve". Há mais de cem citações à dança em Assim Falou Zaratustra –inclusive a frase que encerra tudo sobre este assunto: "Eu só acreditaria em um Deus que pudesse dançar". Não é surpreendente que o autor de "Deus está morto" também tenha cunhado uma frase assim? Pois é dele mesmo.

"Há sempre alguma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura. E também a mim, que sou bem disposto com a vida, parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade. Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto. Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar", diz Zaratustra.

Adesivo com a frase atribuída a Nietzsche à venda na internet

"Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim." Lindo, não? Também poderia ter sido citado tranquilamente pela Simaria. E essa? "Que tudo pesado se torne leve, todo corpo, dançarino, e todo espírito, pássaro." Instagramável, sem sombra de dúvidas.

Tem mais. "Para meus pés, frenéticos dançarinos, lançaste um olhar, ondeante olhar que sorria, indagava, se dissolvia: Apenas duas vezes, com mãos pequenas, agitaste o chocalho –e já meus pés se moveram em frenesi dançante. –Meus calcanhares se erguiam, meus dedos atentavam para te compreender: pois o dançarino tem o ouvido –nos dedos dos pés!" O dançarino tem o ouvido nos dedos dos pés! Será que se a cantora citasse esta também seria ridicularizada? Achariam cafona, talvez?

Sorry, intelectuais sem ginga, mas, para Nietzsche, não havia nada que um filósofo mais pudesse almejar na vida do que ser um pé-de-valsa... "Não sei o que o espírito de um filósofo poderia mais desejar ser do que um bom dançarino. Pois a dança é o seu ideal"

No Ecce Homo, seu derradeiro livro, onde, já enfermo, expõe seus conselhos para uma vida plena, Nietzsche fala para a gente não acreditar em nenhum pensamento que não tenha nascido com o corpo em movimento, "quando também os músculos participam da festa". E conta que escreveu Assim Falou Zaratustra subindo montanhas e... dançando. "Podiam muitas vezes ver-me dançar; e eu podia então, sem qualquer ideia de cansaço, caminhar sete, oito horas pelas montanhas."

Sorry, intelectuais sem ginga, mas, para Nietzsche, não havia nada que um filósofo mais pudesse almejar na vida do que ser um bom pé-de-valsa... "Não sei o que o espírito de um filósofo poderia mais desejar ser do que um bom dançarino. Pois a dança é o seu ideal, também a sua bela arte, finalmente também o único tipo de religiosidade que ele conhece, o seu 'culto divino'", diz, em Gaia Ciência.

Portanto, se Nietzsche não disse a frase citada por Simaria, poderia tranquilamente tê-la dito. A zoeira com a cantora por ter citado o filósofo para mim embute dois velhos preconceitos: o de que mulheres bonitas são burras; e o de que homens inteligentes não sabem dançar. A cantora sertaneja de decotão não tem condições intelectuais de citar Nietzsche, e o de que um intelectual da altura de Nietzsche jamais escreveria uma frase sobre dançar. Logo ele, o John Travolta da filosofia.

"Perdido seja o dia em que não dançamos uma vez sequer! E consideremos falsa toda verdade em que não houve ao menos uma risada!" Assim Falou Zaratustra. Tenho certeza que a Simaria vai curtir demais essa.