Por Joshua Habgood-Coote, no The Conversation
Tradução Maurício Búrigo
A difusão de vídeos de deepfake, fotos alteradas digitalmente e imagens produzidas por inteligência artificial ameaçam nossa capacidade de discernir a verdade da ficção. Os especialistas já preveniram sobre a vinda de um “infocalipse” e das consequências para as eleições deste ano.
No entanto, o maior caso de manipulação fotográfica em 2024 até agora foi a revelação de que a princesa de Gales teria editado manualmente um retrato de família. A imagem foi divulgada pelo Palácio de Kensington, no Dia das Mães britânico, no domingo 10 de março, para tranquilizar o público quanto à sua saúde.
Depois de notarem sinais de que o retrato foi editado, as principais agências internacionais de notícias emitiram “kill notices” (“avisos de remoção”), instruindo todos os veículos a retirarem a imagem de circulação. Isso levou a mais especulação e a um pedido de desculpas de Catherine no X (antigo twitter), admitindo que ela, de fato, “experimenta com edição, às vezes”.
A reação a tal controvérsia pode nos ajudar a pensar sobre um questionamento mais amplo das imagens e vídeos manipulados. No meu ponto de vista, não deveríamos pensar nas fotos editadas como prenúncios do desastre estimulado pelas novas tecnologias. Pelo contrário, elas nada mais são que a etapa mais recente de um longo problema social de falsificação com o qual estamos às voltas há décadas.
Catherine não é a primeira pessoa da realeza britânica a experimentar com a fotografia. A rainha Vitória e o príncipe Albert foram desde cedo entusiastas, posando pela primeira vez para fotografias na década de 1840. Durante esse período, imagens de fotomontagem –que combina múltiplas exposições em uma única imagem– eram correntes, devido às limitações da tecnologia fotográfica.
Os primeiros fotógrafos do movimento pictorialista exploravam as possibilidades artísticas da manipulação fotográfica, valorizando a fotografia mais como uma forma de arte do que como um meio documental.
Algumas dessas fotomontagens, como a imagem de Henry Peach Robinson Fading Away ("Desvanecendo"), eram polêmicas tanto por conta dos seus temas como de sua técnica. Eram vistas como se minassem a fidedignidade daquele instrumento. Vitória e Albert tomaram partido dos fotógrafos pictorialistas, comprando cópias de imagens fotomontadas de Robinson, Oscar Gustave Rejlander e outros.
Fotógrafos de retratos empregavam técnicas semelhantes. Existem várias montagens fotográficas da família real por volta dessa época. Dada a prevalência dessas técnicas, é provável que muitas fotografias de grupos da realeza no século 19 sejam fotomontagens.
O jornalismo nessa época não estava isento da manipulação de imagens. Antes de ser possível imprimir fotografias diretamente nos jornais, em 1880, havia a prática corrente de copiar fotografias com desenhos, embelezando-as ao adicionar-lhes cor e melhorar a composição.
Isso não era visto exatamente como fora do comum em uma época na qual muitos estúdios de fotografia empregavam pintores para retocar retratos. Quando a técnica de impressão em meio-tom começou a ser colocada em uso, os jornalistas continuaram a distorcer suas fotografias, tanto que um editor de uma revista de fotografia teve a audácia de afirmar, em 1898, que “todo mundo falsifica”.
Essa prática foi interrompida, no final das contas, não por inovação tecnológica, mas pelo desenvolvimento de normas sociais. “Falsificar” deixou de ser uma técnica aceita para se tornar uma expressão de crítica, e os fotojornalistas estabeleceram sua reputação em não falsificarem suas imagens.
Deepfakes e fotos manipuladas são com frequência discutidas como um problema puramente tecnológico. A percepção popular é de que seja preciso mais tecnologia –uma ferramenta de software ou marca d’água– para identificar imagens problemáticas. Como as consequências do último retrato da família real nos fazem lembrar, produzir e disseminar imagens precisas e apropriadamente contextualizadas diz respeito, fundamentalmente, a assegurar a confiança necessária em fontes competentes.
Fora dos contextos jornalísticos, não possuímos normas sociais pronunciadas contra acrescentar cores a fotografias. Novos telefones são vendidos com a capacidade apregoada de editar automaticamente fotografias misturadas umas com as outras. Catherine parece ter utilizado, nesse retrato, o tipo de edição que seria comum nas fotografias compartilhadas no instagram ou nos chats de grupos de família.
O problema aqui não é que o software de edição de fotos mine nossa confiança nas fotografias. O problema é que a família real britânica –sobretudo sua assessoria de imprensa– falhou em estar à altura dos padrões que esperaríamos de um órgão público. Mas o fato de termos tais padrões, e os órgãos de imprensa serem capazes de reagir de acordo, mostra que possuímos os instrumentos para lidar com o problema.
Não deveríamos entrar em pânico acerca de imagens manipuladas minando as instituições que diferenciam a verdade da falsificação. Tampouco deveríamos estar satisfeitos por essa imagem falsificada ter sido descoberta rapidamente.
Jornalistas sempre tiveram de lidar com mídia manipulada. Mas isto é um problema social, não apenas tecnológico. Em vez de contar com soluções tecnológicas ou de IA para imagens manipuladas, o passado histórico sugere que o que é preciso mesmo é investir mais dinheiro em jornalistas humanos, inclusive experts em manipulação fotográfica.
Joshua Habgood-Cout é pesquisador associado em Filiosofia na Universidade de Leeds
*APOIE O TRADUTOR: Gostou da matéria? Contribua com o tradutor. Todas as doações para este post irão para o tradutor Maurício Búrigo. Se você preferir, pode depositar direto na conta dele: Maurício Búrigo Mendes Pinto, Banco do Brasil, agência 2881-9, conta corrente 11983-0, CPF 480.450.551-20. PIX: mauricioburigo@gmail.com. Obrigada por colaborar com uma nova forma de fazer jornalismo no Brasil, sustentada pelos leitores.