PIU GOMES
O paulistano Marcelo D'Salete já levou um Eisner Awards em 2018 por Cumbe, que também levou um Grampo de Ouro contando histórias sobre a resistência dos negros escravizados. Em Angola Janga, vencedora do Jabuti de Melhor HQ (e também de três HQ Mix) em 2018, ele nos transporta até o Quilombo dos Palmares em uma narrativa onde mistura rigorosa pesquisa histórica e ficção. Mukanda Tiodora parte da mesma proposta para contar sobre a população negra da São Paulo de 1860, quando o movimento abolicionista fervia e as ruas estavam tomadas por milhares de pessoas negras –escravizadas ou livres– trabalhando em diversos ofícios. Entre elas, vamos conhecer Tiodora.
Personagem real, Tiodora (supõe-se que veio do Reino do Congo) era escrava do cônego Terra e realizava tarefas domésticas para seu senhor na região próxima à Rua da Liberdade (à época, Pátio de São Gonçalo), por onde também andava Claro, pedreiro escravizado que sabia escrever. Tiodora pagou a ele seis vinténs por cada carta que ditou, mas nenhuma das sete foi entregue. Acabaram arroladas como prova num processo em que Claro foi acusado e condenado por roubar o cônego, e Tiodora considerada sua cúmplice. A partir desse contexto real, D’Salete cria uma trama que mistura análise histórica, aventura e misticismo.
Apesar da lei que tornou o tráfico de escravos ilegal em 1831, as fazendas do interior de São Paulo continuavam sendo abastecidas e enriquecendo os poderosos através do café. Também estouravam rebeliões e quilombos na região, onde alguns ex-escravos acabavam se tornando feitores. A mão-de-obra escravizada era vendida também para a cidade, então em crescimento, e isso implicava na separação de famílias, como aconteceu com Tiodora, o marido Luís e o filho Inocêncio. As cartas tornam-se para ela a esperança de rencontrá-los e cumprir a promessa feita à mítica Rainha Kalunga, senhora de todas as travessias, de retornas às costas de Angola.
A mão-de-obra escravizada era vendida também para a cidade, então em crescimento, e isso implicava na separação de famílias, como aconteceu com Tiodora, o marido Luís e o filho Inocêncio. As cartas tornam-se para Tiodora a esperança de rencontrá-los
Marcelo imagina um road movie percorrido por Bené, um escravizado garoto, para encontrar o tropeiro que vai levá-lo até Luís e Inocêncio para entregar uma das cartas de Tiodora. No caminho, encontros com moradores de um mocambo, cenas que ilustram o sofrimento da população negra (incluindo um enforcamento) e uma batalha particular contra um jovem branco da sua idade, reprodutor das ideias escravocratas do pai. Entremeando esses episódios, as utopias líricas e as crueldades vividas no cotidiano por Tiodora e a participação de abolicionistas históricos, como Luís Gama e Ferreira Menezes.
Formado em artes plásticas e mestre em história da arte, o autor acredita que a imagem é que tem de ser determinante na narrativa e trazer diferentes formas de leitura, por isso abre mão de muitos diálogos e aposta em alternar reconstituição de cenários apurada com despojamento em quadros onde closes se destacam em fundos brancos, o que levou à uma bela comparação com o clássico A Paixão de Joana D’Arc, de Carl Dreyer, na página O Quadro e O Risco.
O traço dos personagens mescla realismo e estilização em uma diagramação clássica que permite respiros para grandes planos. Marcelo já disse, em entrevista ao site Vitralizado, que buscou aguadas de nanquim com efeitos de luz em tinta branca de corretivo, citando influências de Alberto Breccia, quadrinista argentino. A edição caprichada traz também a sólida pesquisa feita para o livro, incluindo um texto de Cristina Wissenbach, professora de História na USP com foco na África e nos afro-descendentes do Brasil, a reprodução integral das cartas e uma cronologia da luta abolicionista em São Paulo.
Além do Jabuti e outros prêmios, Marcello Quintanilha já levou dois Fauve d’Or no Festival de Angoulême: em 2016, com tungstênio, recebeu o Fauve Polar SNCF, dedicado ao gênero policial, e no ano passado recebeu o Fauve d’Or de melhor álbum publicado por Escuta, Formosa Márcia. A láurea só fica atrás do Grand Prix do festival, dado ao conjunto da obra.
O niteroiense radicado em Barcelona chega agora com Alimenta Estes Olhos, coletânea que reúne histórias criadas entre 1993 e 2021, incluindo os clássicos já publicados Sábados dos Meus Amores (presente na lista da Folha de S. Paulo dos 200 livros para entender o Brasil) e Almas Públicas.
Marcello Quintanilha já levou dois Fauve d’Or em Angoulême: em 2016, com tungstênio, e no ano passado recebeu o de melhor álbum publicado por Escuta, Formosa Márcia. A láurea só fica atrás do Grand Prix do festival, dado ao conjunto da obra
Passadas entre o subúrbio da grande cidade e os rincões do interior do país, as narrativas de Quintanilha trazem melancolia e humor, poesia e crueldade, além de um apreço pelo brasileiro comum, que as levaram a ser consideradas crônicas visuais. Talvez por isso, Rubem Braga é personagem da primeira delas, a deliciosa e curta Plena de Flôroi, onde só o cronista se atenta ao voo de uma borboleta amarela em pleno centro do Rio de Janeiro.
Em A Fuga de Zé Morcela, a nostalgia do circo de interior acaba levando ao embate entre um funcionário da trupe e um polícia recalcado. E por aí segue o autor, mesclando miscigenação e sincretismo no litoral nordestino ou futebol e superstição no subúrbio. O esporte, aliás, é tema de duas histórias seminais: Fealdade de Fábio Gorila, inspirada por seu pai, que jogou no Canto do Rio, clube de Niterói, considerada uma das melhores narrativas (em qualquer arte) sobre futebol; e De Pinho, que nos leva ao recôncavo baiano para mostrar a dor e a delícia da várzea.
Outras histórias trazem o o carnaval, como Listras de Fevereiro, que saúda personagens que vivem apenas três dias por ano e faz um breve histórico dos desfiles das escolas entre 1932 e 1952. A sexualidade atravessa Granadilha: os crimes do corpo, e Batalha de Flores. O obscurantismo do passado bolsonarista é tema de Caleidoscópio e István Szabó, histórias mais recentes, como as inéditas Arbítrio, uma triste história de amor passada na pandemia, e Hidrografia e Navegação, que leva o desejo do sucesso imediato proporcionado pela tecnologia à foz do Rio São Francisco.
Assim como a temática e a geografia, a arte de Quintanilha é plural. Se no início trazia o excesso do grafite carregando as cores numa composição quase barroca, aos poucos o naturalismo vai se impondo, numa radicalização do realismo, como afirma o autor em texto introdutório à edição. Apesar disso, é interessante notar a alternância entre cores fortes e tons ocres que permeia as histórias. O traço realista dos personagens toma algumas liberdades, e os cenários detalhistas também dão lugar à fundos cromáticos por vezes.
Mukanda vem do quimbundo, língua da família banta, falada em Angola pelos ambundos, e significa carta. E é isso que D’Salete e Quintanilha fazem: nos enviam cartas para melhor entender nossa história e nosso povo, seja através da releitura dos apagamentos a que nossa memória é submetida, seja através da empatia com os personagens do cotidiano vitimados pela paixão.
AUTOR: Marcelo D’Salete
Editora Veneta, 224 págs., R$ 79,90
AUTOR: Marcello Quintanilha
Editora Veneta, 224 págs., R$ 134,90
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