CYNARA MENEZES
Em meados de janeiro, em uma palestra promovida pelo think tank Atlantic Council, a generala Laura Richardson, chefa do Comando Sul dos EUA, delineou claramente o interesse estratégico de seu país em nossa região: petróleo, água doce e lítio. "Temos o triângulo do lítio, que é vital para a tecnologia atual. 60% do lítio do mundo está no Triângulo do Lítio: Argentina, Bolívia e Chile", disse Richardson, em um vídeo que viralizou nas redes sociais.
Não por coincidência, também em janeiro, o presidente do Chile, Gabriel Boric, anunciou que seu governo trabalha na criação de uma estatal para explorar o metal, matéria-prima da bateria dos carros elétricos e considerado vital para a transição energética dos próximos 30 anos. "O Chile tem todo o direito e o dever de poder participar do que gere esta indústria e vamos fazê-lo mediante uma exploração estatal", afirmou Boric em uma coletiva de imprensa durante a visita que o premiê alemão Olaf Scholz fez à América do Sul no início do ano.
A dois meses do fim de seu mandato, em janeiro de 2022, o antecessor de Boric, Sebastián Piñera, havia feito uma licitação para a exploração de 400 mil toneladas do metal, o que causou suspeitas na oposição. Na época, o já presidente eleito criticou que seu país não poderia mais cometer "o erro histórico" de privatizar recursos naturais, como havia acontecido com o cobre, reestatizado em 1971 por Salvador Allende, e com a água. O Chile é o único país do mundo em que a água é totalmente privatizada, uma iniciativa da ditadura de Augusto Pinochet em 1980.
Empossado, Boric sepultou a licitação de Piñera após uma decisão da Corte Suprema do país acolher uma representação impetrada pelas comunidades indígenas de Coyo e Camar de que a decisão era inconstitucional, já que os povos originários da região deveriam ter sido consultados. Criar uma "Empresa Nacional do Lítio" estava no programa de governo do líder esquerdista que chegou ao poder com 55,87% dos votos dos chilenos.
Os novos governos de esquerda sul-americanos investem em cooperação para fortalecer a soberania dos países diante da ganância de bilionários como Elon Musk. O dono da Tesla já mostrou ser capaz de apoiar golpes para obter lítio para seus carros elétricos
Além do presidente chileno, o premiê Scholz esteve com Alberto Férnandez, da Argentina, e com Lula. E foi justamente o lítio que o trouxe para cá. A Alemanha busca recuperar o terreno perdido para a China e os EUA na exploração do metal –o país, que possui duas das maiores fabricantes de automóveis do mundo (Volkswagen e Mercedes), está bem atrás dos norte-americanos e dos chineses. O objetivo do primeiro-ministro é justamente garantir um suprimento de lítio para que estas duas gigantes entrem no mercado de carros elétricos.
O chanceler alemão também deixou claro seu interesse no lítio após encontrar Boric. "A ampliação das energias eólica e solar, a produção de hidrogênio e o comércio do lítio foram os temas centrais no Chile", disse Scholz no twitter.
Chile, Austrália, Argentina e China detêm juntos cerca de 95% das reservas de lítio atualmente conhecidas no mundo. O Brasil, segundo dados atuais, responde por apenas 1,5% da produção de lítio no mundo, mas tem potencial para crescer –segundo dados do Serviço Geológico dos EUA, nosso país possui a sétima maior reserva de lítio conhecida no mundo. O problema é que os locais para extração estão em áreas já degradadas pela mineração, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
Na contramão da Argentina, da Bolívia e do Chile, que estão nacionalizando e promovendo a cooperação entre os países para a exploração deste metal, o Brasil facilitou a entrada de capital estrangeiro privado por meio de um decreto de Jair Bolsonaro de julho do ano passado. A empresa canadense Sigma começou a explorar lítio em janeiro na Grota do Cirilo, apesar das preocupações dos ambientalistas.
Como todo mineral, a exploração do lítio também causa danos ao meio ambiente e utiliza muita água em sua produção. O fotógrafo alemão Tom Hegen produziu uma série de fotos mostrando como fica a paisagem após a mineração do metal em lugares como, por exemplo, o deserto do Atacama, no Chile.
O que os novos governos de esquerda na América do Sul têm feito é se integrar para fortalecer a soberania dos países diante da ganância dos países ricos e de bilionários como Elon Musk. Dono da maior fabricante de carros elétricos do mundo, a Tesla, Musk já demonstrou ser capaz de promover golpes para conseguir a matéria-prima para suas baterias. Em 2018, ele confirmou no twitter, de que hoje também é dono, seu interesse em derrubar qualquer um que se oponha a seus movimentos, como Evo Morales, derrubado do poder naquele ano. “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”, escreveu. Criticado, apagou a postagem.
Alvo da cobiça de Musk, o Salar de Uyuni, na Bolívia, abriga aquele que talvez seja o maior depósito individual de lítio do mundo –fala-se em 17% do lítio de todo o planeta– e cuja existência pode mudar o destino dos bolivianos. Por outro lado, explorar o metal pode fazer o enorme deserto de sal, com 10500 km², perder o apelo para o turismo, com sua paisagem deslumbrante e que parece de outro planeta. A solução, portanto, é cooperação regional.
Na última Cúpula das Américas, realizada nos EUA em junho do ano passado, os presidentes Fernández e Boric lançaram o Grupo de Trabalho Binacional sobre Lítio e Salinas, que já realizou sua primeira reunião. Além disso, a Argentina tem conduzido discussões com a Yacimientos de Litio Bolivianos, estatal boliviana de lítio, enquanto o México, em estágio mais incipiente, mantém comunicação com a Bolívia. Falta o Brasil seguir o rumo dos colegas e entrar na corrida do lítio.
Por que não começar anulando o decreto de Bolsonaro e criando uma secretaria especial interministerial para o lítio, vinculada às pastas da Fazenda, da Ciência e Tecnologia e das Minas e Energia?