CYNARA MENEZES
A viagem de Lula aos Estados Unidos não foi para fechar acordos, mas para selar um acordo: o presidente Joe Biden quis mostrar com toda clareza ao mundo que não apoiará movimentos extremistas no Brasil. Trata-se de algo inédito. Nunca antes na História desse país um presidente norte-americano não só não apoia um golpe aqui como garante que não vai haver um. O presidente é Lula e acabou, as viúvas da ditadura que sosseguem o facho –essa foi a mensagem de Biden.
A palavra "democracia" está presente em quatro dos cinco tweets publicados pelo perfil oficial do presidente dos EUA antes, durante e depois da visita de Lula. No primeiro deles, prévio ao encontro, na tarde do dia 10 de fevereiro, pouco antes de receber o brasileiro, ele diz: "A democracia não pode ser uma questão partidária. Tem que ser uma questão americana. Todas as gerações de norte-americanos tiveram um momento em que foram chamados para proteger nossa democracia. Para defendê-la. Para se levantar por ela. Este é o nosso momento".
Ao recepcionar Lula e Janja na porta da Casa Branca, tuitou: "Bem-vindo aos Estados Unidos da América, Sr. Presidente. Esperamos fortalecer nosso esforço conjunto para combater a mudança climática, promover os direitos humanos e o desenvolvimento econômico e fortalecer a democracia em nossa região e em todo o mundo".
"Foi muito bom sentar com meu amigo e parceiro em democracia, presidente Luiz Inácio Lula da Silva", postou Biden mais uma vez após conversar com o homólogo brasileiro no Salão Oval.
Na quarta vez, o presidente norte-americano escreveu, ilustrando uma foto em que caminhava lado a lado com Lula pelos corredores da Casa Branca: "Construindo uma parceria Estados Unidos-Brasil mais forte para as próximas gerações".
No dia seguinte, sábado, Biden voltou à carga pela quinta vez, postou um vídeo com um resumo do encontro e tuitou: "O presidente Lula da Silva e eu somos devotos de uma ideia fundamental: com democracia, tudo é possível. Sem ela, nada é".
Lula conseguiu o milagre de, pela primeira vez, fazer os EUA defenderem a democracia no país dos outros, e não apenas no seu. Não houve uma única oportunidade em que um presidente brasileiro foi deposto sem o apoio do governo norte-americano. Nos últimos 100 anos, o mais próximo que um presidente dos EUA chegou de respeitar a esquerda foi com Franklin Delano Roosevelt, que chegou a contratar Herbert Marcuse para trabalhar no governo. Alguém pode imaginar uma cena dessas, um filósofo pós-marxista alemão como funcionário da agência que antecedeu a CIA?
Pois isto aconteceu: Marcuse havia migrado para os EUA em 1934, vindo da Suíça, onde já se encontrava exilado. Foi um período brilhante e talvez o único ideologicamente livre da História norte-americana, similar ao que ocorreu durante o governo de Lázaro Cárdenas no vizinho México, com o país recebendo as melhores cabeças do mundo artístico e científico europeu, todos fugindo do nazismo. Além do filósofo, se refugiram lá outros conterrâneos ilustres, como o cineasta Fritz Lang, o dramaturgo Bertolt Brecht, o compositor Kurt Weil e sua mulher Lotte Lenya, o escritor Thomas Mann, a atriz Marlene Dietrich...
A palavra “democracia” está presente em quatro dos cinco tweets publicados pelo perfil oficial do presidente dos EUA antes, durante e depois da visita. O presidente é Lula e acabou, as viúvas da ditadura que sosseguem o facho –essa foi a mensagem de Biden
Em 1943, durante a Segunda Guerra, Marcuse foi contratado pelo Departamento de Estado para trabalhar no OWI (Escritório de Informação de Guerra, em tradução livre) e em seguida transferido para o setor de Pesquisas e Análises do OSS (Escritório de Serviços Estratégicos), a agência de inteligência norte-americana durante a guerra, que em 1947 se transformaria na independente CIA.
Quando o OSS foi desmontado, o filósofo alemão permaneceu como funcionário do Departamento, de onde saiu apenas em 1951, já sob o Macarthismo. Os relatórios de inteligência sobre o nazismo assinados por Marcuse, Franz L. Neumann e Otto Kirchheimer foram reunidos em 2013 no livro Relatório Secreto Sobre a Alemanha Nazista: a Contribuição da Escola de Frankfurt no Esforço de Guerra.
Se trabalhar para o governo dos EUA renderia ao filósofo alemão o epíteto de "traidor" e "agente pago do imperialismo" entre seus detratores, por outro lado possibilitou a Marcuse formar toda uma geração de intelectuais norte-americanos "radicais", a exemplo da pantera negra Angela Davis –e ser influente dentro das universidades até hoje, a ponto de a revista The Economist tê-lo apontado, em setembro de 2021, como inspiração para a "esquerda iliberal" no mundo, ao lado do brasileiro Paulo Freire.
Só que depois de Roosevelt vieram Harry S. Truman, o anticomunismo feroz do pós-guerra nos EUA e a caça às bruxas liderada pelo senador Joseph McCarthy. Truman apoiaria a deposição de Getúlio Vargas em 1945 e sua substituição pelo marechal Eurico Gaspar Dutra. A mando de Getúlio, Dutra havia liderado a repressão à Intentona Comunista de 1936, como comandante da 1ª Região Militar, no Rio de Janeiro, e seria mais tarde nomeado por ele ministro da Guerra, cargo que ocupou até ser expulso do governo por se aliar aos defensores não-comunistas do fim da ditadura Vargas...
Em 1947, a visita oficial de Truman ao Brasil para demonstrar apoio a Dutra resultou na famosa história, que até hoje não se sabe se aconteceu ou é piada. "How do you do, Dutra?", perguntou o norte-americano ao brasileiro, que teria respondido: "How tru you tru, Truman?"
Quando o golpista Carlos Lacerda (o mesmo que anos mais tarde capitanearia a deposição de Jango) defendeu que Juscelino Kubitschek não poderia assumir a presidência após ser eleito, em 1955, o governo de Dwight (Ike) D. Eisenhower simplesmente deixou rolar. "Intervenção militar!", bradava Lacerda, tal qual um bolsominion de hoje na frente do quartel. A justificativa era inclusive a mesma, de que JK era "comunista". E a intervenção veio, mas bem ao contrário do que o "Corvo" esperava.
Um militar legalista, o general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra de Café Filho e depois de seu substituto Carlos Luz, mobilizou as tropas no Rio para um contragolpe. Carlos Luz acabou deposto, a presidência foi assumida interinamente por Nereu Ramos, e, em 31 de janeiro de 1956, Juscelino tomou posse. Os problemas de JK com Eisenhower começaram de fato quando o país decidiu romper com o FMI (Fundo Monetário Internacional), em 1959. O gelo entre os dois só foi quebrado com a visita do norte-americano a Brasília, no ano seguinte. Ike inaugurou a embaixada dos EUA na nova capital.
O golpe de 1964, que levou os ídolos de Jair Bolsonaro ao poder, não teria acontecido sem a participação direta dos Estados Unidos e do embaixador Lincoln Gordon. O governo norte-americano financiou movimentos internos pró-deposição de João Goulart e chegou a montar a "operação Brother Sam" para, de forma hostil, demonstrar apoio militar com embarcações na costa brasileira. O presidente já era Lyndon Johnson, que sucedeu John Kennedy após seu assassinato. Mas as movimentações do golpe começaram bem antes, com o democrata Kennedy no poder –o embaixador Gordon foi indicado por ele.
Em seus primeiros governos, Lula se deu muito bem com os presidentes norte-americanos, inclusive com George W.Bush. Mas o mesmo Barack Obama que visitou Cuba e o chamou de "o cara" daria o suporte para o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, por ação ou omissão
Habilidoso, em seus primeiros governos Lula se deu muito bem com os presidentes norte-americanos, inclusive com George W.Bush. Mas o mesmo Barack Obama que visitou Cuba e o chamou de "o cara" daria o suporte para o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, por ação ou omissão. Não podemos esquecer que foi durante o governo Obama, de quem Joe Biden foi vice, que foi revelado pelo Wikileaks o escândalo da espionagem sobre a chefe de Estado brasileira, em 2013.
A presidenta do país e 29 auxiliares de seu governo, entre ministros, diplomatas, assessores e militares, tiveram seus telefones grampeados pela NSA (Agência Nacional de Segurança). Obama reconheceu a responsabilidade, mas não se desculpou. Em 2016, após o golpe, o presidente norte-americano, se não deu apoio explícito a Michel Temer, tampouco o condenou. O porta-voz, Josh Earnest, se limitou a dizer que o governo dos EUA "reiterava sua confiança na capacidade da democracia brasileira de superar momentos de crise".
Joe Biden, é, portanto, o primeiro presidente dos EUA a não só se colocar contra a possibilidade um golpe como de afiançar que o presidente eleito pela maioria dos brasileiros permanece no cargo. Lula sabe disso, e fez questão de adoçar o colega gringo com palavras que também não são comuns nas relações entre os dois países. "O Biden é o presidente dos EUA que mais tem ligação com os trabalhadores. Eu venho do movimento sindical. E isso deu uma liga", disse o presidente no twitter.
Lula certamente se referia ao empenho do atual presidente norte-americano em desfazer medidas antilaborais da era Donald Trump, quando as principais entidades de defesa do trabalhador e dos sindicatos no governo norte-americano adquiriram um forte perfil pró-patronato. Quando tomou posse, Biden apresentou seu novo gabinete, onde reluziam um busto do líder camponês de origem mexicana César Estrada Chávez, fundador do maior sindicato de trabalhadores rurais dos EUA, o NFWA, e, não por coincidência, um retrato de Franklin D. Roosevelt. Ele proclamou o 31 de março como "César Chávez Day".
Os Estados Unidos vivem um renascimento dos sindicatos, com representações de trabalhadores surgindo em grandes corporações como McDonald's, Starbucks e Amazon, e Biden dá suporte a este movimento. Fortalecer os sindicatos foi promessa de campanha dele à presidência, e, em junho do ano passado, apoiou publicamente a criação de um sindicato pelos trabalhadores da Apple em Maryland. "Estou orgulhoso deles. Trabalhadores têm o direito de determinar sob que condições eles irão trabalhar ou não trabalhar", disse.
Ou seja, Lula não exagera ao dizer que o fato de ter começado na vida pública como sindicalista deu "uma liga" entre os dois. Mas, a julgar pelas imagens, não foi só com o presidente do Brasil que Biden sentiu essa conexão. A mulher de Lula, Janja, cumprimentou-o em inglês na chegada e conquistou a imediata simpatia do norte-americano, que entrou na Casa Branca de mãos dadas com ela e deu todas as mostras de ter ficado encantado com a primeira-dama brasileira.
É claro que todo este calor humano não significa que os EUA subitamente viraram a nação mais democrática do planeta e que deixarão de apoiar golpes na América Latina como sempre fizeram. Há fortes interesses internos envolvidos para que Joe Biden não queira agitação militar no Brasil ou a volta de Jair Bolsonaro ao poder. Em 2024, haverá eleição, e não interessa ao presidente dos EUA ter no vizinho mais ao Sul um aliado de seu principal rival na corrida à Casa Branca, Donald Trump, o "Bolsonaro norte-americano".
Interesses à parte, trata-se de um momento ímpar e de uma conjuntura extremamente favorável: alguém na Casa Branca gosta muito do Lula (e da Janja). Na nota conjunta sobre o encontro bilateral, consta que o brasileiro convidou e o norte-americano aceitou retribuir a visita ao Brasil, em data ainda não definida. Será de fato o começo de uma nova na relação entre os dois países? Antes de tudo, é preciso que a História não se repita. Truman sucedeu Roosevelt; Trump não pode suceder Biden.