Tarantino devia fazer “justiça histórica” no Brasil a partir do golpe de 2016

Em seus últimos filmes, diretor brinca de Deus e realiza o desejo humano de fazer os vilões perderem; por que não aqui?

Brad Pitt e B.J. Novak na cena final de Bastardos Inglórios (2009). Foto: reprodução
Escrito en BLOGS el

CYNARA MENEZES

ATENÇÃO: Este texto contém SPOILERS

É uma das cenas mais inesquecíveis de Superman – O Filme, de 1978: atarefado demais em salvar o mundo, o Super Homem perde o timing para resgatar a própria namorada, Lois Lane, que morre soterrada dentro de um carro. Ele então trapaceia com o destino. Dá algumas voltas super-rápidas (afinal, ele é o Superman) ao redor da Terra, fazendo-a girar ao contrário e voltar no tempo, o que torna possível a ele salvar a amada.

https://youtu.be/5DJ1_sklHHk

Superman realiza na ficção o desejo que todo mundo tem na vida real de mudar o curso da História. Quem nunca fantasiou em entrar na máquina do tempo para impedir uma catástrofe, uma guerra, a morte de um ente querido, uma eleição? Brincando de Deus, Quentin Tarantino fez isso em três de seus últimos filmes, movendo os fios da História para levar à vitória os derrotados, para arrebentar com os vilões.

Em Bastardos Inglórios (2009), criou um "final alternativo" para a Europa da Segunda Guerra onde os nazistas não se criam; em Django Livre (2012), realiza a vingança histórica dos negros escravizados; e em Era Uma Vez em Hollywood (2019), "impede" um dos mais sangrentos crimes de todos os tempos: o assassinato brutal da atriz Sharon Tate pela Família Manson, jovens seguidores do aloprado guru Charles Manson, em 1969.

Fantasio com Tarantino fazendo Justiça histórica no Brasil de 2016. A cena emblemática seria o voto de Bolsonaro homenageando Ustra. Que maravilhas ele faria com isso! E Eduardo Cunha, então? "Que Deus tenha misericórdia dessa Nação" e bum! Bang! Crash!

Nos EUA, críticos chamam esse processo de Tarantino de "vingança histórica", "história fake" e até "revisionismo". Na verdade, o que faz o diretor é saciar a sua e a nossa sede de reparação. Lembro das pessoas urrando no escurinho de satisfação ao ver Brad Pitt marcar nazistas a faca na testa com seu próprio símbolo repugnante. Em Era Uma Vez…, em cartaz no Prime Vídeo, a bela, doce e talentosa Sharon Tate sobrevive… Ela foi morta aos 26; teria hoje 78 anos, seu filho 52 e toda uma carreira cinematográfica, interrompida a facadas por fanáticos lá atrás.

Tarantino aproveita o poder do cinema de recriar mundos e personagens para tornar realidade o inexistente "E se…?" "E se tivéssemos esmagado os nazistas antes de tudo acontecer?" "E se os negros escravizados tivessem se rebelado e partido para cima dos senhores?" "E se os assassinos de Sharon Tate tivessem sido pegos antes de matá-la e a seus amigos na mansão de Bel Air?" A História, modificada para o bem na tela do cinema, desconcerta e ao mesmo tempo produz na plateia a sensação reconfortante de revanche, sem que seja preciso pegar em arma alguma. Uma vingança sangrenta de mãos limpas, que se passa apenas na imaginação.

Fantasio com Quentin Tarantino fazendo sua Justiça histórica no Brasil a partir do golpe de 2016. O momento emblemático do filme, o ponto de partida, seria o voto de Jair Bolsonaro em favor do impeachment, quando ele cinicamente dedica o "sim" ao torturador Brilhante Ustra, "o terror de Dilma Rousseff", com o filho, Eduardo, "dublando" pateticamente sua fala ao fundo. Que maravilhas Tarantino faria a partir desta cena e em cada voto dos canalhas ("em nome de minha família") daquela tarde de domingo fatídica. E com Eduardo Cunha, então? "Que Deus tenha misericórdia dessa Nação" e bum! Bang! Zapt! Crash!

https://youtu.be/xiAZn7bUC8A

No "final alternativo" para o Brasil do golpe, não teria havido golpe, claro. Com o país livre dos bastardos, Dilma teria governado até o fim, Lula não seria preso, teria havido eleições limpas em 2018 e continuaríamos no caminho da democracia. Puxa, Tarantino, nunca te pedi nada. Vem fazer um filme desses aqui.

Menos mal que a gente tem a chance de mudar os rumos da História em 2022, e na vida real. Né não?