ELEIÇÕES

A responsabilidade de Macron na ascensão da extrema direita francesa

Integrantes da coalizão governista hesitam em abandonar a ambiguidade e apelar para o voto na esquerda contra a extrema direita no segundo turno; pesquisadora francesa fala, em entrevista, sobre a culpa do presidente e de seu grupo político no crescimento dos extremistas

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Embora integrantes da coalizão governista de Emmanuel Macron digam que nos distritos em que seus candidatos estiverem em terceiro lugar abrirão mão da disputa para impedir que parlamentares do partido de extrema direita Reunião Nacional (RN) se elejam, a posição não é unânime. Não à toa, diversos jornais franceses pedem nesta segunda-feira (1º), em seus editoriais, que a coligação presidencial faça um apelo, sem ambiguidades, para seus eleitores votarem em candidatos de esquerda no segundo turno contra os extremistas de direita.

No entanto, neste domingo (30), o ex-primeiro-ministro francês Édouard Philipp exercitou a falsa simetria que foi (e ainda é) muito utilizada aqui no Brasil. “Nenhum voto deve ser dado aos candidatos do RN, nem aos da LFI [La France Insoumise /França Insubmissa, partido de esquerda integrante da coalizão Frente Popular]”, disse.

A situação evidencia a responsabilidade que políticos de centro-direita e direita tem na ascensão do extremismo. "Em nível francês, as coisas andaram muito rápido, já que é o próprio presidente da República que busca, desde 2017, desacreditar a esquerda para ter o RN como adversário. Além dos discursos dos líderes de seu campo, são também as políticas implementadas (lei de imigração, reforma das aposentadorias, reforma do desemprego) e a repressão mais dura aos movimentos sociais (os coletes amarelos) e a dissolução difícil de explicar da Assembleia Nacional na noite das eleições europeias que serviram de trampolim para a extrema direita", avalia a professora de ciência política da Universidade Rennes 2 Estelle Delaine, também autora do livro À l'extrême droite de l'hémicycle : le Rassemblement national au coeur de la démocratie européenne (em tradução livre, "Na extrema direita da Câmara: o Reunião Nacional no centro da democracia europeia").

Em entrevista concedida à Fórum por e-mail, Estelle avalia que o presidente francês tem parcela significativa de culpa diante das possibilidades reais de extremistas chegarem ao poder no Parlamento do país. "Emmanuel Macron tem uma grande responsabilidade, a de ter levado o 'nem-nem' (nem extrema direita, nem esquerda) a extremos nunca experimentados - a direita, desde Nicolas Sarkozy, já estava hesitando em lançar uma barragem contra a extrema direita, mas o contexto político era menos premente", pontua. 

"O campo presidencial tem se esforçado para dar instruções claras de voto e está preparado para correr o risco de governar com a extrema direita, em vez de se unir a uma frente republicana - há vários candidatos do Ensemble [Juntos, coalizão de Emmanuel Macron] que não querem se retirar em eleições triangulares e afirmam que o LFI e a extrema direita são perigos semelhantes. Esses argumentos são amplamente adotados pelos canais de notícias de propriedade de Vincent Bolloré, que também recrutaram recentemente colunistas que foram líderes de grupos violentos de extrema direita (como o Génération identitaire)", diz a pesquisadora.

Extrema direita "aprendeu" no Parlamento Europeu

A decisão de Emmanuel Macron de convocar as eleições legislativas realizadas neste domingo (30), na França, se deu após a vitória do partido de extrema direita Reunião Nacional (RN) na disputa pelo Parlamento Europeu, quando obteve 31,37% dos votos. Além do significado político em si, foi um fato emblemático, já que os extremistas conseguiram aprimorar suas táticas e estratégias político-eleitorais justamente na Casa legislativa da União Europeia.

A professora de ciência política da Universidade Rennes 2 assinala em artigo que, tal como outros Legislativos na história, o Parlamento Europeu oferece recursos significativos e permite que parlamentares eleitos de extrema direita se formem "na e por meio da democracia, potencialmente para se prepararem para outras eleições".

Ela destaca que Marine Le Pen falou ao Le Monde, em janeiro de 2023: "não estamos aqui para ter uma longa carreira parlamentar. Estamos aqui para conquistar o poder. Ao aprendermos a ser parlamentares, estamos ao mesmo tempo criando um programa e equipes de governo." Hoje parlamentar nacional, Le Pen também foi eurodeputada de 2004 a 2017.

Os deputados da extrema direita conseguem, no Parlamento Europeu, aprender a ter contato com o próprio léxico da democracia representativa, e também garantem acesso a recursos técnicos e financeiros, além de contatos com redes de interesses que podem lhes garantir recursos e apoios para eleições nacionais. Mesmo quando integrados em blocos supranacionais, os parlamentares da extrema direita buscam acordos para garantir sua autonomia e não entrarem em conflito com eventuais interesses locais.

O papel do neoliberalismo na ascensão da extrema direita

Estelle também relaciona o panorama atual de ascensão da extrema direita na França, e na própria Europa, à reafirmação do domínio neoliberal, que defende tanto a austeridade em tempos de crise, prejudicando a maior parte da população, como também uma espécie de "gerencialização" da função pública, com as instituições executivas do continente ganhando mais força e poder em detrimento do Parlamento Europeu.

"Especialmente desde a crise de 2008, as instituições europeias têm promovido cada vez mais políticas públicas neoliberais, ou seja, mercantilização, liberalização, desregulamentação e austeridade. Estas são escolhas políticas que são, em grande parte, fruto de lutas pelo poder entre as instituições europeias, mas também o resultado das crenças dos gestores públicos europeus e dos membros dos gabinetes da Comissão (sobre a eficácia da "nova gestão pública" ou propostas sobre saúde ou assistência social, em particular). Os representantes eleitos de extrema direita podem facilmente investir em uma retórica antieuropeia e nacionalista para criticar as políticas europeias que são muito mais amplamente questionadas", avalia a pesquisadora, em entrevista à Fórum.

Assim, cria-se um ambiente em que é possível uma espécie de "normalização" dos extremistas. "[O RN] é apoiado por setores mais amplos da sociedade, que projetam nele diferentes esperanças (de ordem e moralidade, recuperação econômica, respeitabilidade individual etc.)", aponta Estelle. "Entretanto, não creio que sejam apenas os esforços do RN que possam explicar o aumento eleitoral. Na verdade, foram as mudanças concomitantes no campo político e midiático dominante na França e na Europa que moldaram o RN como um oponente político aceitável. As promessas e a linguagem do partido permaneceriam letra morta se não fossem tornadas críveis e discutidas pelos atores dominantes."

Confira abaixo a entrevista na íntegra de Estelle Delaine.

Além de aprender a manipular o léxico democrático no Parlamento Europeu, como você descreve no artigo, a extrema direita francesa também articula e desenvolve estratégias baseadas no contato com grupos extremistas de outros países?

Sim, sem dúvida (esse é um capítulo do meu livro). Observar a geometria das alianças europeias no Parlamento Europeu é instrutivo para entender os interesses dos diferentes partidos na formação de suas alianças internacionais. Na verdade, há várias questões em jogo na negociação: ao mesmo tempo, conseguir reunir um número suficiente de partidos que concordem em se apresentar em conjunto; vincular-se a vários parceiros para mostrar aos seus simpatizantes a vitalidade do apoio (especialmente quando os partidos não têm facilmente representantes ou alianças em nível nacional e local); ao mesmo tempo, evitar líderes políticos ou partidos políticos "infrequentes" que possam frustrar os objetivos de suavizar a imagem da sigla. No entanto, os vínculos com estes últimos existem em espaços menos conhecidos, como partidos europeus ou fundações europeias - e podem ser observados na organização do trabalho político em comitês europeus (mesmo que isso não tenha o mesmo impacto que as alianças formais, pude ver que os eurodeputados gregos do Aube Dorée às vezes cediam seu tempo de fala para os eurodeputados da FN [Frente Nacional, antigo nome do atual RN] do grupo ENL [Grupo Europa das Nações e da Liberdade, que incluía parlamentares da FN e outras legendas d extrema direita), por exemplo).

Durante meu estudo etnográfico, observei como o grupo ENL (oitava legislatura) estava estruturado após o término das negociações. O secretário-geral do grupo na época justificou a forte autonomia das várias delegações nacionais que compunham o ENL pelo próprio título do grupo: as nações tinham muita liberdade. Isso significava que havia uma dissensão considerável entre os aliados, que não trabalhavam para construir linhas políticas comuns. Como resultado, não apenas os diferentes parceiros puderam manter suas posições independentemente de sua participação no grupo (expressas, por exemplo, por diferentes listas de votação para questões em sessões plenárias), mas também não trabalharam em linhas comuns sobre assuntos com os quais estavam mais de acordo (como imigração). Isso pode parecer ineficiente, mas, na realidade, essa independência oferece muita liberdade e independência aos grupos políticos de extrema direita, que não se sentem limitados por restrições e podem modificar suas doutrinas de acordo com as agendas nacionais de curto prazo, por exemplo.
 

Como a predominância da lógica neoliberal ajudou a fortalecer a extrema direita na França?

Acho que há muito a ganhar quando se observa a história das instituições europeias ao analisar o sucesso da extrema direita dentro delas e, depois, nos Estados Membros europeus. Essa história mostra o peso dos projetos econômicos na estruturação dessas instituições - elas foram inicialmente projetadas para fornecer uma estrutura para um mercado econômico, com a ideia de que a "tecnocracia" ou a especialização, para usar um termo com conotação menos negativa (para a recuperação econômica das regiões afetadas pela Segunda Guerra Mundial e para a cooperação genuína por meio do compartilhamento de interesses econômicos) compensaria as aporias da "política" (percebida como ineficaz e responsável por essa mesma guerra).

Contra esse pano de fundo, vários atores - que dificilmente poderiam ser descritos como de extrema direita - se opuseram à criação e ao aprofundamento dos poderes do Parlamento Europeu em vários estágios de sua história. Portanto, proponho considerar esses obstáculos históricos e a juventude e o descrédito aos quais as instituições europeias são frequentemente submetidas para explicar o sucesso da extrema direita em nível europeu (em vez de considerar que isso é o resultado de sistemas de votação que são vantajosos para pequenos partidos ou das atitudes dos eleitores). O objetivo aqui não é julgar sua vitalidade ou necessidade, mas sim sua legitimação lenta e difícil, o que torna possível entender o sucesso da extrema direita nesse campo político, que é sempre fácil em democracias em crise.

Além disso, especialmente desde a crise de 2008, as instituições europeias têm promovido cada vez mais políticas públicas neoliberais, ou seja, mercantilização, liberalização, desregulamentação e austeridade. Essas são escolhas políticas que são, em grande parte, fruto de lutas pelo poder entre as instituições europeias, mas também o resultado das crenças dos gestores públicos europeus e dos membros dos gabinetes da Comissão (sobre a eficácia da "nova gestão pública" ou propostas sobre saúde ou assistência social, em particular). Os representantes eleitos de extrema direita podem facilmente investir em uma retórica antieuropeia e nacionalista para criticar as políticas europeias que são muito mais amplamente questionadas. Eles fazem isso insistindo nas clivagens e em sua qualidade de oponente político e, assim, criam essa figura de protesto. O neoliberalismo nunca foi um bom baluarte contra a extrema direita e, nesse caso, ele torna a crítica demagógica da extrema direita ao "sistema" audível para um público muito mais amplo.

O Reunião Nacional tem se esforçado para buscar diferentes perfis de ativistas e eleitores, procurando também responder a solicitações específicas de muitas localidades francesas. Como isso ajudou a renovar sua imagem?

Os especialistas no partido concordam que, ao longo de sua história, o RN sempre reuniu várias franjas da extrema direita que têm valores diferentes (e às vezes se odeiam) - católicos tradicionalistas ou fundamentalistas, membros de grupos identitários violentos, ex-ativistas pró-coloniais, nostálgicos do regime de Vichy ou da monarquia, ativistas racistas e anti-imigração... Ao mesmo tempo, ele é apoiado por setores mais amplos da sociedade, que projetam nele diferentes esperanças (de ordem e moralidade, recuperação econômica, respeitabilidade individual etc.). Vários pesquisadores, como Patrick Lehingue, apontam que os eleitorados da FN/RN são conglomerados, reunindo eleitores fiéis com aqueles que são mais ocasionais, os convictos com aqueles que querem fazer uma sanção ou um voto provocativo, aqueles que votam na extrema direita ou contra a Europa e outros que não leem os programas e debates sobre as eleições. Publicamos um livro (Sociologie politique du RN, enquêtes de terrain) que mostra como o RN se tornou aceitável em círculos sociais muito diferentes, bem como as razões individuais e coletivas para diferentes níveis de apoio (que vão do voto à militância mais assertiva).

Entretanto, não creio que sejam apenas os esforços do RN que possam explicar o aumento eleitoral. Na verdade, foram as mudanças concomitantes no campo político e midiático dominante na França e na Europa que moldaram o RN como um oponente político aceitável. As promessas e a linguagem do partido permaneceriam letra morta se não fossem tornadas críveis e discutidas pelos atores dominantes.

Como o próprio ambiente político contribuiu para a normalização do Rassemblement National na sociedade francesa?

Se quisermos entender por que a extrema direita está se aproximando do poder, precisamos observar como os partidos do governo e a mídia se comportam em relação a ela, e se ela consegue convencer os financiadores a apoiá-la. Portanto, observei o que o RN estava fazendo no Parlamento Europeu, tendo em mente que esses contatos e negociações sempre ocorreram nos parlamentos antes de os partidos de extrema direita chegarem ao poder. Eu estava tão interessada na Europa quanto em uma instituição deliberativa que fornecia assentos para o RN desde 1984, embora o partido não tivesse conseguido ser eleito para a Assembleia Nacional de forma permanente (houve um breve período entre 1986 e 1988, depois três membros eleitos em 2012 e oito membros eleitos em 2017 antes da eleição de 89 membros eleitos do RN em 2022). Então, eu me perguntei: o que a extrema direita aprende durante sua fase parlamentar? Como ela usa os recursos da democracia? Como ela se conecta com membros eleitos de outros partidos e, especialmente, com a direita majoritária, que tem interesse em formar coalizões olhando para a sua direita? Investiguei por cinco anos (2013 a 2018) e concluí que o "cordão sanitário" dependia apenas da boa vontade dos líderes de direita que tinham um interesse crescente em formar alianças ocasionais com a extrema direita.

Em nível francês, as coisas andaram muito rápido, já que é o próprio presidente da República que busca, desde 2017, desacreditar a esquerda para ter o RN como adversária. Além dos discursos dos líderes de seu campo, são também as políticas implementadas (lei de imigração, reforma das aposentadorias, reforma do desemprego) e a repressão mais dura dos movimentos sociais (os coletes amarelos) e a dissolução difícil de explicar da Assembleia Nacional na noite das eleições europeias que serviram de trampolim para a extrema direita.

Emmanuel Macron tem uma grande responsabilidade, a de ter levado o "nem-nem" (nem extrema direita, nem esquerda) a extremos nunca experimentados - a direita, desde Nicolas Sarkozy, já estava hesitando em lançar uma barragem contra a extrema direita, mas o contexto político era menos premente. O campo presidencial tem se esforçado para dar instruções claras de voto e está preparado para correr o risco de governar com a extrema direita, em vez de se unir a uma frente republicana - há vários candidatos do Ensemble [Juntos, coalizão de Emmanuel Macron] que não querem se retirar em eleições triangulares e que afirmam que o LFI e a extrema direita são perigos semelhantes. Esses argumentos são amplamente adotados pelos canais de notícias de propriedade de Vincent Bolloré, que também recrutaram recentemente colunistas que foram líderes de grupos violentos de extrema direita (como o Génération identitaire).