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por Cesar Castanha
Um amigo, há algum tempo morando em Bruxelas, disse que o filme Como nossos pais (dir. Laís Bodanzky, 2017) o deixou com saudades de São Paulo. Achei uma afirmação bonita, mas também curiosa, considerando que a cidade de São Paulo se apresenta no filme mais por um conjunto de espaços internos — os apartamentos, os escritórios, os super-mercados, os carros — que por um movimento, digamos, não mediado pelas ruas da cidade. O que é ainda interessante é que, mesmo antes de ler o comentário desse amigo (Raphael Ocelli, ecólogo e um baita cinéfilo), a presença de São Paulo, ou de um conjunto de afetos da classe média paulista, também me comoveu no filme, mesmo que eu não compartilhe dessa saudade pela distância.
A cidade está muito presente no filme por um certo modo de existência que é mesmo bem particular dela. Cresci em São Paulo, em um apartamento ao lado do minhocão, e, como meu irmão ainda mora lá, visito a cidade com frequência. Há poucas semanas, estive lá com meu namorado, que não a conhecia. Nesse processo de mostrar a cidade para outra pessoa, muitos aspectos que para mim já estavam naturalizados sobre ela me surpreenderam. Desses, principalmente, foi a força da normatização do movimento pela cidade que me deixou um pouco horrorizado. Não me refiro apenas ao famoso “mantenha-se à direita”, mas à sensação de atrapalhar o trânsito quando, ao caminhar por uma região mais movimentada da cidade, você ousa se distrair, parar, dar meia volta.
Logo quando fomos recebidos e falávamos dos passeios que estavam planejados, meu irmão comentou que não consegue conceber São Paulo como uma cidade para se fazer turismo. Essa observação define muito bem o modo de se relacionar com o espaço urbano que Como nossos pais apresenta, do cotidiano de classe média pautado por uma repetição de espaços privados e pelo estranho ato de habitar a claustrofobia, de se sentir em casa onde se está sufocado.
A protagonista de Como nossos pais é Rosa (Maria Ribeiro), uma mulher de classe média, casada e mãe de duas garotas. Vivendo um momento difícil em seu casamento, ela é confrontada pela mãe (Clarisse Abujamra) com duas informações que afetam duramente a relação entre as duas e o modo como Rosa entende a si mesma. A ausência do marido (Paulinho Vilhena), um antropólogo envolvido em causas indígenas e que se afasta de suas responsabilidades domésticas, força Rosa a lidar com essas mudanças solitariamente, pesando sobre seu já carregado cotidiano, o que inclui seu cuidado com um pai inconsequente (Jorge Mautner), seu emprego numa agência de publicidade, a relação com as filhas e o desejo de experimentar uma carreira como dramaturga, seu sonho de juventude.
A peça que está concluindo é uma continuação de Casa de bonecas, de Henrik Ibsen, obra que tematiza a dinâmica de opressão contra a mulher dentro da sociedade burguesa escandinava na segunda metade do século XIX. É possível perceber algumas tentativas do filme de traçar correlações entre Rosa e a protagonista da peça, Nora, e principalmente de funcionar também como um comentário sobre a experiência da misoginia na classe média. Esse aspecto o filme tende a expor de modo notavelmente didático, mais até do que os casos mais famosos do cinema brasileiro recente a lidar criticamente com hábitos e conflitos da classe média branca, como Que horas ela volta? (dir. Anna Muylaert, 2015) e Aquarius (dir. Kleber Mendonça Filho, 2016).
Diferentemente desses dois filmes, Como nossos pais está mais distante de problematizar relações de classe. Desde que a obra reconheça os personagens dentro de um contexto de classe, o que ela faz, não acho que isso se configure necessariamente num problema. Só é inesperado que, ao se utilizar de um roteiro que expõe tão claramente as inquietudes dos personagens em sua relação com o mundo, eles não sejam confrontados da mesma maneira por seus vínculos de classe.
Definidos, assim, a partir de problemáticas tão específicas que tocam a relação entre eles — e apenas a relação entre eles —, os personagens caem num lugar de caricatura que é estranho à investida do filme no realismo social. O personagem de Jorge Mautner deve ser o que mais sofre com essa questão, relegado a balbuciar uma série de falas estereotipadas para reforçar um mesmo aspecto do personagem toda vez que aparece em cena. Há uma ansiedade do filme de explicitar os conflitos ali presentes que faz com que tanto os personagens quanto o desenvolvimento mais cuidadoso desses mesmos conflitos sejam atropelados pelo roteiro.
A primeira cena do filme, por exemplo, um almoço na casa da mãe de Rosa, é uma desculpa para que o filme encene uma série de indicações autoconscientes sobre os personagens. Ele se utiliza, para isso, de um lamentável simplismo na relação entre eles, que apenas convivem em um estado de constante hostilidade, sem experimentar um único momento de contenção, silêncio ou dúvida ao compartilhar de um mesmo espaço. Quando sua mãe diz que o almoço é em homenagem ao genro, Rosa imediatamente expõe todas as problemáticas de seu casamento, ao que a mãe ordena que se cale afirmando que seu trabalho doméstico não é tão importante quanto o trabalho social do marido, o que faz com que a filha responda que o banheiro da mãe precisa de reforma.
Mesmo que você aceite que se trata realmente de uma experiência coletiva de tão manifesto e total desrespeito, o caminho que o filme precisaria traçar para solucionar os conflitos e encontrar o afeto naquelas relações precisaria ser mais difícil e gradual, e os personagens precisariam ser confrontados com o risco real de não encontrarem o afeto que buscam nesses espaços. Quando os problemas, todos tão sérios, são rapidamente resolvidos a partir de uma simples aceitação dos personagens de que a mudança é necessária, fica a impressão de que o filme percebe o sofrimento típico de uma estrutura familiar normativa como algo que deve ser solucionado sem mexer com essa estrutura.
“Mas a resistência no casamento não deveria também ser celebrada?”, pergunta a cunhada de Rosa à sogra, no almoço da primeira cena. Parece que o filme acredita que sim. E Nora, que termina Casa de bonecas fechando a porta, deixando marido e filhos para trás, está voltando para casa na referência que Bodanzki e seu corroteirista Luiz Bolognesi fazem à peça. De fato, São Paulo parece ter um jeito de fazer da casa de bonecas um vício difícil de se resistir aos que conseguem se adaptar a esse modo de vida. Suas normas para quem deseja habitar a cidade são tão duras que apenas suportá-las já se torna uma significativa vitória privada. E Nora fecha a porta, desta vez do lado de dentro.