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Tilda Swinton em O Expresso do Amanhã |
No ano passado, fui muito positivamente surpreendido por Em Chamas, segunda parte da adaptação cinematográfica de Jogos Vorazes. Os dois filmes da saga lançados até agora (pretende-se mais dois) estabelecem entre si um interessante diálogo que reflete em perspectivas distintas, embora com suas semelhanças, do universo retratado. E se Em Chamas pede um novo olhar ao primeiro filme, este carrega seus próprios questionamentos à logica da saga, transformados com a continuação. Assim, Jogos Vorazes permite ressignificações a si mesmo e às regras do próprio jogo.
Se esse aspecto de autoanálise é buscado por O Expresso do Amanhã (Joon-ho Bong, 2013), e acho que é, então ele se perde na montagem descuidada do filme. Lógico, O Expresso do Amanhã e Jogos Vorazesguardam uma diferença muito mais significativa em sua pré-história. Enquanto O Hospedeiro garantiu a Bong e ao que quer que ele viesse a fazer depois certo grau de respeitabilidade, Jogos Vorazes foi descartado pela cinefilia como o produto caça-níquel de Hollywood que ele é.
E por isso não quero sugerir que Jogos Vorazes é impecável, apenas que, comparando-se cenários apocalípticos do cinema muito recente, este é muito mais interessante que O Expresso do Amanhã. E é importante para mim apontar como o filme do Ho-Bong erra no exato ponto em que Jogos Vorazes acerta.
Ambos os filmes trazem um cenário de reconstituição geográfica do mundo que conhecemos hoje com um retrocesso, ou assim querem considerar, do sistema de estratificação social. Nesse sentido, Jogos Vorazes traz um universo que levou a divisão social do trabalho ao extremo, com doze distritos cumprindo funções distintas em subserviência a uma capital corrupta e dispendiosa. Já O Expresso do Amanhã, que, como seu nome sugere, é ambientado num trem, aproveita a geografia simples do veículo para estabelecer sua relação de hierarquia. Do primeiro ao último, os vagões vão se tornando menos luxuosos e habitados por pessoas de aspecto mais miserável. Aqui, a classe dominante, politicamente ativa em Jogos Vorazes, é obsoleta e não se faz percebida para além dos maquinários de repressão (escola, forças armadas e algumas poucas figuras políticas) que é fraca demais para justificar.
Poucos dias depois de ver O Expresso do Amanhã e ainda procurando um norte para a resenha, assisti, pela primeira vez, ao Tudo Vai Bem(Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, 1972). O filme traz a França pós-1968 e inspirou a sua dupla de diretores a fazer uma estranha carta pública a Jane Fonda que viria a ser o documentário Letter to Jane: An Investigation About a Still, um estudo sobre a imagem fotografada tão espetacular quanto A Câmera Clara, de Roland Barthes.
Pós-1968, em Tudo Vai Bem, é uma expressão que carrega na narrativa um propósito muito parecido com o pós-apocalíptico das ficções-científicas mencionadas. Interessantemente, o cenário recriado por Godard e Gorin também explode na ânsia por revolução nas estruturas hierárquicas e reflete na divisão social do trabalho, que tem seu papel investigado tanto neste quanto em Letter to Jane.
Debruçar-se sobre o lugar da burguesia politicamente engajada na revolução social é o que faz Tudo Vai Bem e Letter to Jane e é o que, em menor proporção, Em Chamasensaia fazer. Ignorar a classe é o erro maior de O Expresso do Amanhã, desqualificando o filme a uma obra que diz muito em sua ambição, mas não entende uma palavra sequer.
Yves Montand e Jane Fonda em Tudo Vai Bem |