As exigências financeiras feitas pela “troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional), sob a hegemonia da Alemanha, durante os anos a partir de 2008, destroçaram a economia grega, levaram ao desemprego em massa, que atingiu duramente 25% da população economicamente ativa, ao colapso do sistema financeiro. As drásticas medidas de austeridade impostas empurraram a dívida externa dos 128% para os 177% do PIB, absolutamente impagáveis. A economia se deteriorou dramaticamente com as receitas fiscais em queda livre, produção, emprego e renda em forte descenso, quebra de empresas e negócios com avidez de capital que não mais existia.
O impacto social e humanitário foi espantoso: 40% das pessoas passaram a viver na pobreza, boa parte na miséria, os suicídios se multiplicaram, a mortalidade infantil cresceu aceleradamente e o desemprego entre os jovens chegou perto de 50% entre outras drásticas mazelas.
Uma disseminada corrupção, evasão de divisas, sonegação fiscal endêmica e uma contabilidade fraudada do governo grego anterior do social-democrata Pasok estiveram na origem do problema da dívida. O povo grego arcou então com boa parte da austeridade, verdadeiro arrocho, imposto pela chanceler alemã, Angela Merkel: salários foram cortados; gastos sociais governamentais, podados; pensões, reduzidas; privatizou-se; e, as relações de trabalho foram desregulamentadas, com aumento de impostos. Uma conjuntura econômica que não era vista na Europa desde os anos 1929-1933. O medicamento prescrito por Berlim e pela “troika” longe de curar a doença, provocou hemorragia.
Com esse cenário de fundo, feriram-se as eleições de janeiro de 2015. O partido de esquerda Syriza venceu o pleito valendo-se de uma plataforma de nítido enfrentamento à política de austeridade da “troika”. Seu líder, o jovem Alexis Tsipras, foi conduzido à chefia de governo.
Cinco meses de intensas negociações se passaram para a reconfiguração da dívida. Esse duro processo, conduzido pela “troika” numa inesgotável sucessão de chantagens, condicionamentos e pressões, tinha por objetivo central impor uma humilhante derrota à pretensão de Atenas de manter, ainda que minimamente, sua soberania política e o controle das finanças. Tramava-se e se preparava o terreno — e isto foi denunciado pelo ministro grego Yanis Varoufakis — para que a Grécia fosse retirada da zona do euro (o chamado 'Grexit') com o fim de disciplinar os Estados membros que viessem a resistir aos seus planos. O que se exigia a capitulação todo o transe.
Na tradicional e histórica postura germânica — vocalizada pela chanceler Merkel — não se buscava apenas a derrota da Syrisa e sim a imposição de uma humilhante rendição que servisse de alerta para outros países europeus igualmente envolvidos em pesadas dívidas com os organismos internacionais. O látego sobre o lombo dos gregos estava erguido: que não ousassem incorrer na audácia de desobedecer as exigências dos banqueiros e dos dirigentes políticos que agem em seu nome. E que o açoite servisse de advertência a outros países europeus vergados sob o peso da dívida externa. Se na Grécia a proporção da dívida sobre o PIB era de 177%, na Itália, Portugal e Espanha rondava os 120%, na Irlanda, 110% e 106 % na Bélgica.
A intransigência de Angela Merkel e da troika chegou ao auge, como se entregasse uma mauser carregada ao governo grego e dissesse: aponte a arma para a sua têmpora e atire. O projétil não iria somente matar o futuro grego na Europa. Iria matar a eurozona, que foi criada como fortaleza inexpugnável de paz, esperança, democracia e prosperidade.
Tsipras, inesperadamente, convoca um plebiscito e comanda uma curta e acirrada campanha pelo “Não”. O povo grego iria dar a resposta se curvava a espinha e aceitava as determinações da “troika” ou se rebelava-se. A resposta, digna e justa, de 5 de julho foi um contundente “Não”: 61,3% contra 38,7%.
O mundo desenvolvido — e a Alemanha em particular — foi colhido de surpresa pela valente atitude do povo helênico. Insatisfeitos e incorformados, os credores trazem de volta o candente tema da dívida à mesa de discussões. E esse crucial assunto transborda para amplos setores da opinião pública mundial.
Para Paul Krugman e Joseph Stiglitz, prêmios Nobel de Economia, assim como para Thomas Piketty, Feffrey Sachs e tantos outros, a postura de Berlim e da “troika” , tomada sob a inspiração dos cães de guarda do neoliberalismo, era um tiro de misericórdia ao projeto comum europeu. Do estrito ponto de vista da política econômica, a lista de exigências elaborada pelos ministros de Finanças do euro era simplesmente “uma loucura”. O ultimato de rendição incondicional era para Krugman, “um ato de pura vingança que carregava em si a total destruição da soberania nacional grega sem qualquer esperança de alívio ou resgate”.
O que conta agora para Merkel e a “troika” são os interesses do capital financeiro e sua insaciável voracidade. Se para tanto for necessário assistir à tragédia da destruição da Grécia, amém! Onde está a nobre tradição humanista e libertária nascida do Iluminismo? Onde ficam as alardeadas consignas da “Europa dos povos e das nações”, insistentemente repetidas pelos hipócritas burocratas da União Europeia? A democracia, os direitos humanos e a solidariedade para certos chefes de Estado não passam de fachada cujo objetivo é assegurar a sacrossanta taxa de lucro do grande capital.
A regente de toda essa encenação é Angela Merkel, governante de um país que jamais se preocupou em honrar suas dívidas nem cumprir com as reparações por ações de guerra não provocadas contra outros países. A própria Grécia ainda aguarda o ressarcimento dos horrores e destruição suportados pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1953, uma conferência liderada pelos Estados Unidos, Reino Unido e França, resolveu quitar mais de 60% da dívida que se arrastava desde a Primeira Guerra Mundial, o que criou as condições favoráveis a um reerguimento econômico, conduzido pacificamente. A Alemanha terminou de pagar a renegociação mais de meio século depois, em outubro de 2010, sem se preocupar pelo “confisco” sofrido pelos credores nem com o dogma da propriedade privada, agora defendida belicosamente pela “troika”. Historiadores ressaltam que o cancelamento de dois terços de sua dívida externa foi mais importante que o Plano Marshall para resgatar a Alemanha dos escombros e encaminhá-la ao progresso.
Na madrugada de 13 de julho, Alexis Tsipras ouviu dos ministros de Finanças e dos diretores da “troika” os termos de uma rendição incondicional na guerra econômica e política em curso. Coube ao ministro de Finanças da Finlândia, Alexander Stubb, a missão de dar a conhecer as cláusulas da capitulação. Exigiu-se da Grécia três conjuntos de medidas, de imediata aplicação, a fim de poder receber aportes financeiros: ratificação pelo Congresso helênico e por meio de leis, até 15 de julho, dos itens acordados; draconianas reformas trabalhistas e previdenciárias; e, significativo aumento de impostos: amplo leque de privatizações e intervenção em fundos de privatização e de pensão. Compensações e limitações alegadas como triunfos da posição grega não passam de medidas cosméticas que em nada atingem o núcleo da questão.
Syriza teve a ousadia de se rebelar, apostando na democracia e venceu as eleições. Tsipras teve a dignidade de apelar a uma consulta popular para decidir o curso da ação que o governo devia tomar para enfrentar a crise e obteve a vitória.
Há momentos cruciais, no curso dos acontecimentos, em que um personagem ingressa, pelo seu ato, definitivamente na História. Tsipras teve em mãos essa possibilidade e a jogou fora. Não tinha o direito de contrariar a manifestação de seu povo, apenas uma semana antes. Deveria retornar ao seu país e convocar uma grande manifestação, transmitida por rede de televisão e rádio. Informar à população de um país pobre como a Grécia dos graves riscos decorrentes da negativa em aceitar as imposições da “troika”. Dizer claramente que poderiam advir desabastecimento, fome, inflação, desemprego, bancarrotas, agruras de todo tipo. E perguntar ao povo se estaria disposto a resistir.
Certamente receberia uma vigorosa resposta afirmativa. Ato contínuo, partir para o entendimento interno com sindicatos, movimentos sociais, instituições públicas a fim de manter alguma ordem e evitar o caos. Arrumar as malas e se dirigir aos povos dos países atingidos pelas mesmas mazelas apelando à solidariedade. Diplomaticamente, buscar apoio internacional, em governos amigos, nas Nações Unidas, no papa Francisco, na Igreja Ortodoxa grega. Alargar a fenda entre França e Alemanha, jogar com Obama que tem um olhar distinto do problema da dívida externa. Enfim, lutar, resistir, com coragem e inteligência.
Comparações históricas são imprecisas e reducionistas. O que me ocorre é o que aconteceu com Cuba em seguida à derrocada da União Soviética. Fidel foi à Praça da Revolução e perguntou à multidão ali reunida se estava disposta a resistir. Resistiram, passaram fome, iam a pé para o trabalho pois não havia combustível para os veículos, assavam folha de bananeira à guisa de filé de carne, apagões diários e intermináveis ... Resistiram anos e mantiveram a dignidade e a soberania. Aos poucos, com a solidariedade internacional de povos e medidas locais e internacionais, a situação tendeu a melhorar.
Finda a reunião com a “troika”, Tsipras baixou a cabeça, enfiou a papelada na pasta e voou para Atenas. Lá passou a articular a aprovação pelo Congresso dos termos do acordo, argumentando que com os novos aportes teria como respirar por algum tempo e arrumar a casa. Dobrou os joelhos, perdeu a honra e não terá como respirar nem arrumar a casa.