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O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar
Por Pedro Estevam da Rocha Pomar
Virou moda o emprego da expressão “Ditadura Civil-Militar” para designar o regime instaurado em nosso país por meio do golpe militar de março-abril de 1964. Ativistas de direitos humanos, ex-presos políticos, estudantes universitários, e até pesquisadores acadêmicos de renome vêm utilizando tal adjetivação, na mesma medida em que descartam a designação habitual, Ditadura Militar, que até alguns anos atrás parecia consolidada tanto na literatura e historiografia quanto na tradição oral popular, bem como no discurso coloquial da militância política de esquerda.
Os defensores da expressão “Ditadura Civil-Militar” vêem-na como necessária para explicar adequadamente o conteúdo do regime vivido no Brasil entre 1964 e 1985, que resultou de um conluio do extrato militar com setores empresariais civis. Assim, no entender dessa corrente, falar somente em Ditadura Militar seria deixar de reconhecer o papel ativo de segmentos da burguesia no regime ditatorial, “livrar a cara” da ala civil da contra-revolução que ensanguentou, oprimiu e humilhou o país por duas décadas.
Ocorre que, por mais nobre que seja o propósito de renomear o período, trata-se de um profundo equívoco. Tivemos neste país não uma “Ditadura Civil-Militar”, mas uma Ditadura Militar, sem aspas. Embora todos nós da esquerda saibamos da participação civil tanto no golpe de 1964 (fartamente documentada em livros como 1964: A Conquista do Estado, de René Dreyfuss) como no regime que dele se originou, também entendíamos perfeitamente que quem mandou de fato, quem exerceu o poder político, foi o Alto Comando das Forças Armadas.
Os militares ocuparam não apenas a Presidência da República, mas também cargos centrais em todos os órgãos da administração federal direta e indireta, de ministérios a empresas estatais, nos seus principais escalões. Alguns se tornaram, até, governadores de Estado. Controlavam a sociedade por meio da comunidade de informações, encabeçada pelo SNI e formada por centenas de milhares de agentes e informantes (há quem fale em dois milhões de informantes), e cujo aparato repressivo possuía tentáculos operacionais que se apresentavam como siglas macabras: OBAN, DOI-CODI, CIE, CISA, Cenimar.
Os militares passaram a controlar a educação, a cultura, o esporte... Mas, sobretudo, deram as linhas na política e na economia. Os parceiros civis de maior expressão que incentivaram o golpe de 1964, ou nele embarcaram com a ilusão de que teriam alguma influência nos destinos do novo regime, como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Juscelino Kubitschek, Ademar de Barros, foram postos de lado em algum momento. Pior ainda, alguns desses parceiros foram perseguidos. Ao cair mortalmente adoentado o ditador Costa e Silva, o vice-presidente civil, Pedro Aleixo, foi impedido de assumir a presidência. Em seu lugar empunhou o poder a Junta Militar. Só no último governo ditatorial, o de João Figueiredo, é que um vice-presidente civil, Aureliano Chaves, exerceu por curto período a presidência, quando do afastamento do general para tratamento médico no exterior.
O parlamento, uma das faces mais visíveis do poder civil no capitalismo, funcionou a maior parte do tempo, mas em que condições? Foi continuamente solapado e mutilado, especialmente desde que se recusou a punir o deputado Márcio Moreira Alves, em 1968. Dissolução de partidos, cassações de parlamentares da oposição, criação da figura do senador biônico, de tudo inventou a Ditadura Militar para subordinar e impor limites ao parlamento. Mesmo o judiciário, um poder conservador por excelência, foi ultrajado com a perda das garantias históricas dos juízes e a extinção do habeas corpus.
Tivemos portanto neste país, sem a menor sombra de dúvida, um regime militar, constituído por governos militares, ainda que tenha contado com sócios e cúmplices civis. Portanto, neste exato momento da história em que a Comissão Nacional da Verdade dá início a seus trabalhos, falar em “Ditadura Civil-Militar” é um desserviço e só se presta a diluir a responsabilidade dos militares que cometeram crimes de toda sorte, atrocidades e violações de direitos humanos, e que procuram despistar e criar confusão.
É preciso sim identificar os grandes empresários e a oligarquia que financiaram e inspiraram o golpe militar e a repressão política. Os cúmplices civis dos governos militares, os apoiadores dentro e fora da mídia. Queremos sim sua punição! Mas de imediato deve-se identificar e punir aqueles que foram a sua guarda pretoriana, que cometeram crimes de sangue em favor do regime. Que perseguiram, trucidaram, executaram covardemente, ocultaram e destruíram corpos.
Enquanto não fizermos isso, enquanto a sociedade brasileira não acertar as contas com a Ditadura Militar, as Forças Armadas continuarão atuando contra a democracia. E, portanto, agindo em benefício das mesmas forças civis que apoiaram e estimularam o golpe. Para que as instituições militares deixem de ser um obstáculo à democracia em nosso país, é preciso que fique bem caracterizada a existência da Ditadura Militar no período 1964-1985. Porque as Forças Armadas precisam ser democratizadas: suas escolas, seus currículos de formação de oficiais, seus regimentos disciplinares. E para isso não pode haver qualquer dúvida a respeito do que ocorreu neste país: um regime militar, comandado por altos oficiais; um regime que contou sim com a cumplicidade do grande capital nacional e estrangeiro, e que o beneficiou; e que exatamente por esta razão vem sendo defendido pela mídia e por partidos de direita como DEM e PSDB.
É claro que o golpe de março-abril de 1964 teve forte presença do grande capital e de outros setores civis e, neste sentido, pode ser denominado “cívico-militar”. Mas uma vez derrubado Jango e entronado Castello Branco, instaurou-se a Ditadura Militar. Ou seja, a partir de 1964 a forma assumida pelo domínio burguês foi precisamente um regime militar, uma ditadura castrense.
Ao falar-se em “Ditadura Civil-Militar”, com a finalidade de garantir que não seja esquecida a participação de civis no regime, termina-se por obter o efeito inverso, qual seja o de diminuir a responsabilidade dos militares, além de confundir a sociedade brasileira, já familiarizada com a expressão Ditadura Militar para designar esse terrível período da nossa história. “O termo civil também serve para designar o regime como autoritário, brando, negociado etc. Como se não fosse uma ditadura”, adverte o historiador Lincoln Secco.
Deveríamos, finalmente, render nossa homenagem à história das organizações e movimentos que combateram o regime: apesar de todas as diferenças que os separavam, não tinham a menor dúvida a respeito do que enfrentavam: uma Ditadura Militar.
Pedro Pomar é jornalista, editor da Revista Adusp e doutor em ciências da comunicação.
* Originalmente publicado no Página 13