Solidão na Virada Cultural

Já faz 8 anos que a cidade experimenta essa festança descomunal. A cada edição surgem questionamentos a respeito das políticas de incentivo à cultura, e as avaliações que se apresentam vão da rabugice estéril ao deslumbramento mais ingênuo. Nesta que foi a minha primeira Virada como morador da região central chamou-me mais a atenção o aspecto humano da celebração e a solidão de muitos dos frequentadores.

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Por Felipe Carrilho Sou frequentador da Virada Cultural desde a primeira edição. Vivi momentos bonitos, emocionantes, mas também trágicos, como os da apresentação dos Racionais na praça da Sé, que terminou em pancadaria entre os fãs e a polícia, em 2007. Já faz 8 anos que a cidade experimenta essa festança descomunal. A cada edição, a sua capacidade de organizar o evento é colocada à prova. Surgem questionamentos a respeito das políticas de incentivo à cultura, e as avaliações que se apresentam vão da rabugice estéril ao deslumbramento mais ingênuo. De fato, não se pode negar a carência que grande parte da população paulistana sente de oportunidades de entretenimento no restante do ano. Nem se deve negligenciar que a superlotação e a incidência de tumultos e exageros no consumo de entorpecentes – lícitos ou não – estão ligados, pelo menos em parte, a essa demanda social mal solucionada. No entanto, não me interessa aqui tratar de políticas públicas ou de reivindicações da sociedade. Nesta que foi a minha primeira Virada como morador da região central – desde o ano passado resido na Barra Funda, próximo ao Minhocão – chamou-me mais a atenção o aspecto humano da celebração e a solidão de muitos dos frequentadores. Chegamos atrasados e não conseguimos assistir ao show da banda norte-americana Man or Astroman?, que minha mulher tanto desejava ver. Além de hordas juvenis, notei em volta daquele palco da Barão de Limeira com a Duque de Caxias a presença de pessoas de meia idade, em geral sozinhas. Perguntei, então, a uma senhora o que haveria na sequência, mas obtive como resposta que ela não conhecia nenhum dos artistas que haviam tocado e nem os que ainda iriam se apresentar. Lembramos do famigerado banquete que o Alex Atala prometida dar no Minhocão. Uma galinhada. Fomos caminhando pela São João até que, sob o viaduto, avistamos a barraca sendo montada lá no alto. Faltavam alguns minutos para a meia-noite, hora marcada para o início da comilança. Pegamos a primeira alça de acesso e tranquilamente seguimos rumo ao restaurante improvisado. Confesso que não esperava degustar a iguaria. Era evidente que haveria muito mais bocas do que pedaços de galinhas para as alimentar. Quase foi grata a nossa surpresa quando chegamos ao local e encontramos pouco mais de uma dezena de pessoas sentadas no concreto que divide as vias do Minhocão. Mas não demorou para percebermos que, no lado oposto ao qual havíamos chegado, uma verdadeira multidão se acotovelava, represada por uma barreira de ferro. Eram milhares, a perder de vista. Enquanto um organizador berrava que nós não poderíamos comprar a comida que estava à nossa frente porque todas as senhas haviam sido distribuídas ao pessoal empoleirado a uns 20 metros dali, e uma mulher retrucava que estava esperando “há duas horas” e que não iria embora sem mascar o frango, um solitário senhor maltrapilho perguntava aos cozinheiros de plantão: - O Alex tá aí? Quando a porteira foi aberta, segurei a mão da minha mulher e tratei de dar o fora. A solução foi procurar um boteco pé-sujo e sem grife, gratamente encontrado não muito longe dali. Entre pedaços de carne e uns goles de cachaça, fui interpelado por um excêntrico senhor que bebia cerveja sozinho: - Você não deve ter 30 anos, eu tenho 60. Qual é o seu signo? Nós de virgem não precisamos de ninguém para nos divertir. Enquanto voltávamos para casa a pé e eu pensava na solidão das pessoas que havia encontrado naquele dia com tanta gente na rua, ainda tivemos tempo de conversar com uma mulher que nos abordou no caminho. Voltava só depois de assistir ao show em homenagem à Elis Regina na São João. “Chorei tanto naquela música”, dizia e cantarolava errando a letra. Comecei o texto dizendo que não iria tratar de política ou de questões sociais, mas sinto que no fundo é disso que acabei falando. No final das contas, acho que a motivação íntima de cada um dos que pegam em bandeiras e gritam palavras de ordem é a felicidade e a comunhão com o semelhante. Já no elevador, dizia para a minha mulher que não gostaria de ser um homem solitário. Ao que ela prontamente replicou rindo: “Basta você andar na linha”. Felipe Dias Carrilho é historiador e autor do livro "Futebol, uma janela para o Brasil - As relações entre o futebol e a sociedade brasileira".