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Por Felipe Carrilho
José Paulo Florenzano é professor do departamento de Ciências Sociais da PUC-SP. Nesse sábado (07/04), aceitou o meu convite para conversar a respeito do filme Heleno, o Príncipe Maldito, em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.
Autor do livro "Afonsinho e Edmundo, a rebeldia no futebol brasileiro" – fruto de sua tese de mestrado –, Florenzano passeia com naturalidade pela trajetória do esporte nacional e pondera: “Para entender a rebeldia do Heleno é preciso uma pesquisa histórica do futebol naquele contexto, que ainda não foi feita”.
A opção por analisar os jogadores Afonsinho e Edmundo em seu mestrado já permite perceber que você trabalha com um conceito amplo de rebeldia dentro do futebol.
Defino a rebeldia como uma luta que se desenvolve em três frentes de combate. Uma luta contra a Lei do Passe, esse mecanismo jurídico que vinculava o atleta ao clube numa relação de poder assimétrica, que historicamente sempre favoreceu a classe dirigente. A segunda frente de combate é contra o que chamo de poder da norma de gerir a vida do atleta. A disputa em torno da linha de demarcação entre o espaço do trabalho e o espaço da vida privada. E finalmente, também me parece impossível desvincular a rebeldia da defesa de uma concepção de futebol menos burocrática, mais aberta, no sentido de favorecer a vida profissional do atleta como uma obra de arte, e não como uma peça de um mecanismo montado meramente para obter resultados.
O Heleno caberia dentro desse conceito?
No meu livro, o Heleno entra nessa história como um resgate feito por um discurso de poder. Quando surge o Edmundo, ele é imediatamente associado ao Heleno e ao Almir Pernambuquinho, as duas figuras paradigmáticas, uma da violência e a outra da loucura. Então o Heleno é aí resgatado para justamente fixar essa leitura de que a rebeldia conduz à loucura. Esquece-se a questão da doença, a sífilis, e fica a ideia de uma loucura moral. E ideia de que o preço que se paga pela rebeldia é a perda da razão. Agora, para se entender o caso específico do Heleno, é preciso contextularizar o jogador duplamente: o período histórico que o País vivia e o especificamente contexto do futebol brasileiro que, como você aponta muito bem na sua resenha, tem um fator de mudança decisivo que é a profissionalização. O Heleno é alguém nesse momento de transição de um futebol amador para o futebol profissional, da figura emblemática do sportsman para o novo personagem que é o boleiro, o que representa uma mudança de classe social que implica uma mudança na identidade do jogador brasileiro.
No caso do filme, a representação da rebeldia do Heleno foi satisfatória?
O filme tem uma trama interessante, dentro da opção do diretor pela vida boêmia do personagem. Mas quem tem uma espectativa de encontrar no filme um ponto de articulação do futebol com a sociedade irá se decepcionar. Expressar esse elo é realmente muito difícil tanto na linguagem cinematográfica quanto no registro acadêmico. A perda maior do filme é não entrar na história do futebol daquele momento. Esse mergulho na história do futebol era o passo fundamental para atribuir inteligibilidade às ações do Heleno. Sem isso, ficamos no registro do individualismo levado às últimas consequências.
No final das contas há uma justificativa da rebeldia de Heleno no filme. Seja por causa da sífilis ou por causa dos valores e do amor à camisa, o jogador pareceu-me ser retratado com indulgência pelo diretor.
Há um encantamento do diretor com o personagem, não é muito crítico em relação a ele. A questão da patologia é uma estratégia para desqualificar, por um lado, a rebeldia, ou de certa maneira justificando na ótica do diretor e, por outro lado, a questão que você coloca é fruto da maneira como ele deixa de problematizar a introdução do profissionalismo. Talvez tenha passado despercebido ao diretor que ele está de certa maneira exaltando essa ética amadora, que é utilizada até hoje nas relações sociais dentro do futebol. Então, se julga, se critica, se classifica um atleta em nome de uma ética amadora, que é uma grande arma na mão da classe dirigente.
Quando a gente fala em amadorismo, o público amplo às vezes tem a ideia de que estamos nos referindo a algo precário, mal-organizado. Mas o amadorismo no futebol é algo localizado no tempo histórico, uma prática esportiva em que setores sociais específicos participavam. Daí o surgimento dessa ética. O Heleno me parece alguém que resgata essa ética, mesmo que de modo tortuoso, no momento do desenvolvimento do profissionalismo.
O futebol é implantado no País dentro de um âmbito restrito socialmente, nos clubes de elite de São Paulo. Essa prática visava a distinção social, era a apropriação de um modismo importado da Europa. Essa prática passa pela questão da classe social, passa por um conjunto de valores que ela implica. Um deles é se doar à camisa não por uma remuneração, mas por uma série de identificações com o clube, com a classe que frequenta o clube.
Pela honra também.
Pela honra. O Heleno de Freitas em grande parte encarna tudo isso. Fica claro na maneiro como se vincula ao Botafogo, o estilo de jogo inclusive, da gana pelo simbolismo do clube. Ele é a figura do sportsman. Está dentro do contexto do futebol amador, que se institucionaliza nesse período de implantação até a virada do profissionalismo na década de 1930.
Nesse sentido, não pareceram lineares e descontextualizas as comparações que feitas na mídia entre Heleno e Adriano ou Edmundo?
Para entender a rebeldia do Heleno é preciso uma pesquisa histórica do futebol naquele contexto, que ainda não foi feita.
A origem social dos personagem é um elemento fundamental ignorado por muitos nessa comparação.
Exato. Tanto Adriano quanto Edmundo sofrem e sofreram estigmas atribuídos às chamadas “classes perigosas”. A origem social parece explicar tudo. Você aciona um conjunto de esteriótipos que vai anular aquilo que há de perturbador na rebeldia dos atletas. Então, é extremamente interessante pensar o Adriano como alguém que joga pelos ares o dinheiro e a carreira na Europa. De alguma maneira, esse cara colocou outros valores acima disso. E não é só por uma questão de patologia, de doença mental, ou da origem social dele. É uma opção de vida! E isso é desqualificado por essas associações. Há algo de interessante no comportamento do Adriano. A saída dele seja para a Vila Cruzeiro ou para o Capão Redondo mostra uma identidade social que ele não perde, apesar da ascensão social pelo futebol. O Adriano é uma figura muito mais interessante do que o discurso do jornalismo permite perceber.
Você está fazendo um contra-discurso sobre o Adriano. É possível fazer o mesmo com o Heleno?
Veja, é interessante pensar como a figura do Heleno foi sendo ressignificada ao longo do tempo. Nós estamos num momento de exaltação da figura desse jogador por causa da abordagem do filme. Mas há um Heleno que é preciso contextualizar na década de 1940, há um Heleno do filme e há também um Heleno do início década de 1990, que foi invocado para almadiçoar jogadores como Edmundo, Romário, Dener, Djarminha... Nesse período, a figura do Heleno foi resgatada não como modelo de exaltação, mas como a marca da loucura moral.
Lembrei do primeiro capítulo do "Negro no Futebol Brasileiro", do Mário Filho, que se chama “Raízes do Saudosismo”. Eu não consegui deixar de considerar que o filme representa uma forma de saudosismo. O Heleno que aparece na tela é o que muitos chamam de “último dos jogadores românticos do Brasil”. Agora, a primeira edição do "Negro no Futebol Brasileiro" é de 1947. E já havia saudosismo naquela época.
O filme tem esse gosto de nostalgia mesmo, de um passado em que o atleta era mais autêntico. Justamente porque não problematiza a história do futebol brasileiro. Veja, esse contexto do Heleno é o mesmo do Zizinho. Antes, nos anos 1930, tínhamos Leônidas, Fausto, a maravilha negra, que representou talvez o primeiro embate de um atleta com a questão do passe no Flamengo. Então, o Heleno precisa ser colocado ao lado desses personagens contemporâneos para que a gente possa entendê-lo melhor. Talvez não tenha havido uma identificação da categoria dos atletas, ou daquele segmento marcado pela ideia de rebeldia, com o comportamento do Heleno, que passa pelo gesto de queimar dinheiro no vestiário.
É sintomático que a gente não tenha assistido a escolha de nenhum desses outros personagens, tão significativos quanto Heleno, como tema de filme.
Por que eles não foram escolhidos e por que eles não aparecem no filme? São as perguntas. Não sabemos nada da relação entre eles.
Aparece uma única frase, dita por Heleno: “Leônidas está velho”, algo assim. Trata-se de um craque negro. Mas esses elementos às vezes aparecem como uma pincelada, como uma mera contextualização no sentido de que não problematiza. Uma coisa feita só para pontuar que nessa época jogava o Leônidas.
O filme podia ter explorado a questão da distinção de classe social do Heleno em relação aos outros atletas. Social e racial. Especificamente no caso do Leônidas e do Zizinho. Mas só a pesquisa pode dizer se as questões que estamos colocando aqui são pertinentes. Mas pode ser que Heleno de alguma maneira expressasse através disso que é visto como idiossincrasia, esse temperamento, um certo preconceito.
Felipe Dias Carrilho é historiador e autor do livro "Futebol, uma janela para o Brasil - As relações entre o futebol e a sociedade brasileira"