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Por Flamarion Maués
A reivindicação da anistia no Brasil após o golpe de 1964 teve um momento importante em 1975, quando D. Paulo Evaristo Arns encaminhou, na Quinta-Feira Santa daquele ano, “um pedido de ampla e generosa anistia para os presos políticos às autoridades brasileiras”. E foi nesse ano que a campanha pela anistia começou efetivamente de modo mais organizado, com o surgimento do Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA), organizado inicialmente em São Paulo sob o comando de Therezinha Zerbine. E em 1º de fevereiro de 1978 foi lançado oficialmente, no Rio de Janeiro, o primeiro Comitê Brasileiro de Anistia, num movimento crescente que levou a que, em novembro de 1978, se realizasse o I Congresso Nacional pela Anistia, em São Paulo.
A partir de 1977, alguns livros de oposição que tratavam da reivindicação da anistia, da denúncia das torturas contra presos políticos e do exílio começaram a ser publicados. Neste artigo falarei especificamente de um deles, que teve importante papel na campanha pela anistia.
Liberdade para os brasileiros
Lançado em agosto de 1978, Liberdade para os brasileiros: Anistia ontem e hoje, de Roberto Ribeiro Martins, escrito com a colaboração de Paulo Ribeiro Martins e Luís Antônio Palmeira (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira), foi um livro claramente engajado na campanha pela anistia.
Militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o autor havia sido preso político, condenado a cinco anos de prisão, e tivera seus direitos políticos cassados por dez anos. Foi ainda no presídio do Barro Branco, em São Paulo, no final de 1976, que iniciou as pesquisas para o livro, “influenciado pela recente chegada dos companheiros sobreviventes do Massacre da Lapa (Aldo Arantes, Haroldo Lima e Vladimir Pormar)”.
Já fora da cadeia, o trabalho do autor sobre o tema teve continuidade com a publicação dos estudos “Anistia ontem e hoje” (Coorjornal, Porto Alegre, nº 26, março de 1978) e “Anistia, tema atual” (Cadernos do CEAS, Salvador, nº 54, março/abril 1978), e ganhou maior amplitude e profundidade com o convite para a elaboração do suplemento especial sobre anistia para o jornal Movimento, um dos mais importantes da imprensa alternativa, que porporcionou o auxílio de uma equipe maior para a pesquisa sobre o tema, além de passar a contar com colaboradores diretos.
Nesse período, Martins participou também da fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) do Rio de Janeiro.
O livro traz uma narrativa da ideia e da prática da anistia na história, desde a Antiguidade Grega até o século XX, com especial destaque para a história das anistias no Brasil, mostrando que no país havia uma tradição “de encerrar cada ciclo de revolta, contestação ou guerra com o ato da anistia, para a pacificação da família brasileira”, como lembra o historiador Hélio Silva, na apresentação do livro.
A publicação foi feita pela Civilização Brasileira, editora das mais conceituadas e atuantes politicamente, que em 1978 ainda estava sob a direção de Ênio Silveira, um dos mais importantes editores do país em todos os tempos. A Civilização Brasileira sofreu perseguições por parte do governo militar nos anos 1960 e 1970, que levaram à quebra da editora e à sua venda. A indicação para a edição do livro pela editora foi feita pelo historiador Hélio Silva, que havia estabelecido contato com Roberto Martins por meio de alguns presos políticos.
O livro teve duas tiragens de 4 mil exemplares cada uma, e chegou a constar das principais listas de livros mais vendidos, como a da revista Veja, por algumas semanas. Recebeu também várias resenhas na imprensa, entre as quais destaco a de Antônio Houaiss, na revista IstoÉ (06/09/1978, p. 67), que se referia à obra como “livro urgentemente oportuno, serenamente corajoso, didaticamente aliciante”. E também o comentário do advogado José Gregori, no Encontro Nacional pela Democracia (Rio, dez. 1978, Centro Brasil Democrático), que afirmou que o livro “constitui um dos instrumentos mais eloquazes, mais esclarecedores na presente luta pela anistia. Acho que sua contribuição nessa luta, no sentido de tomar o tema e decompô-lo completamente, é uma contribuição altamente construtiva”.
Lançamentos eram eventos da campanha da anistia
De acordo com o Roberto Martins, “Houve lançamentos do livro no Brasil inteiro, a começar pelo Rio, sendo os mais significativos os da Bahia e do Rio Grande do Sul. Sempre eram acompanhados de debates, fundação de CBAs, entrevistas à imprensa, visitas às mais influentes instituições da sociedade civil, como as seccionais da OAB. Em Porto Alegre fomos recebidos [na] Assembleia Legislativa, além de participar de sessão especial da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. Em Curitiba deu-se a fundação do CBA e um debate onde estavam presentes, entre outros, o Fernando Henrique Cardoso”.
Além desses, houve também lançamentos em Belém, São Luís, Fortaleza, Natal, Recife, Maceió, Aracaju, sempre promovidos pelos CBAs locais.
Como salienta Martins, estes eventos “ajudaram a levar o debate sobre a anistia a cada canto do país”, e ajudaram na formação de comitês pela anistia e direitos humanos, por meio de comícios, debates, entrevistas e reuniões, “tendo sempre o livro como bandeira de luta”.
Trinta anos após o lançamento do livro, Martins afirma que a obra “desempenhou importante papel na luta pela anistia. Em primeiro lugar, porque forneceu uma base histórica, jurídica e política para fundamentá-la. Como tal, constituiu-se num manancial de argumentos e exemplos para toda a sociedade”. E completa: “Seu lançamento, sem dúvida, muito contribuiu para quebrar resistências e ampliar a adesão à causa da anistia”.
Ainda em 1979, José Gregori destacava: “Quando se fizer a história da anistia, acho que [este] livro, sem dúvida nenhuma, se inscreverá entre as colaborações mais positivas”.
Trata-se de um clássico livro de oposição, que cumpriu um papel político de certo destaque no período da abertura política e na campanha pela anistia, principalmente entre os setores médios da sociedade, nos quais o hábito da leitura e a possibilidade de acesso aos livros são maiores. Foi, como muitos outros livros de oposição, instrumento da luta política que se travava naquele momento no Brasil, dando voz a denúncias e reivindicações das oposições, além de proporcionar condições para o debate e a realização de eventos públicos em torno do tema que abordava.
Fontes:
- As informações utilizadas neste artigo provêm do Posfácio de Roberto Ribeiro Martins publicado na nova edição do livro Liberdade para os brasileiros, lançada em 2010 pela editora Brasiliense com o título de Anistia ontem e hoje; e de mensagem eletrônica de Roberto Ribeiro Martins a mim enviada em 12/09/2009.
- MARTINS, Roberto Ribeiro. Liberdade para os brasileiros: Anistia ontem e hoje. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. Nova edição em 2010 pela editora Brasiliense.
- TELES, Janaina de Almeida. Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Dissertação de mestrado em História, FFLCH-USP, 2005.
GRECO, Heloísa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese de doutorado em História, FAFICH/UFMG, 2003, p. 34.
“Continuaremos nossa missão de falar às consciências”, entrevista de D. Paulo Evaristo Arns. Opinião, 18/4/1975.
Flamarion Maués é editor de livros e historiador.
Errata No artigo anterior, “Um livreiro que não sabia que era responsável pela segurança nacional”, cometi engano. Eu havia escrito que “Raul veio com 15 anos para Porto Alegre, e depois para São Paulo, onde ancorou”. Na verdade, como corrigiu o próprio Raul Mateos Castell, ele veio primeiro para São Paulo, onde ficou por quase três anos. Depois foi para Porto Alegre, onde permaneceu por sete anos, voltando para São Paulo, logo depois do golpe de 1964, pois a repressão estava atrás dele.