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por Felipe Carrilho
O futebol, verdadeira instituição nacional, pode ser visto como um indicador privilegiado da realidade social do Brasil quando abordado de modo mais profundo e analítico. Na semana em que se comemora a consciência negra, é oportuno tratar das contribuições do negro para a construção do nosso país a partir de uma lente de observação futebolística.
No momento em que ganha força o argumento segundo o qual a inconsistência do conceito de raça, do ponto de vista biológico, inviabiliza a constatação do racismo na prática social brasileira, é necessário tratar do negro, indissociável da história do nosso país e da sua principal prática esportiva.
No início da trajetória do futebol em nossas terras, o negro se tornou um elemento central para o debate a respeito dos rumos da nação. No final do século 19, com a abolição do regime escravista, optou-se por uma política de branqueamento de nosso povo, em que o incentivo à imigração europeia para abastecer as lavouras de café e a produção industrial representou o seu carro-chefe. Por meio da aposta em certo modelo de miscigenação, tal ideologia procurava diluir o elemento negro, sufocando a diversidade racial ao forjar uma sociedade pretensamente branca e homogênea.
Oliveira Viana talvez seja o apologista mais notório do branqueamento da sociedade brasileira. Para o intelectual, o mestiço representava um atraso inevitável para o país, que só poderia ser remediado com a “arianização” de nosso povo. Assim, os “elementos bárbaros” de nossa constituição social seriam reduzidos pela crescente entrada de brancos em nosso país.
O futebol, índice preciso do estado geral da nação, explicitou as consequências da disseminação desse pensamento ao seu modo. Artur Friedenreich, por exemplo, filho de um comerciante alemão e de uma lavadeira negra, considerado o primeiro craque de nosso futebol, precisava disfarçar a sua negritude, esticando os cabelos e empapando-os com brilhantina, para se sentir socialmente incluído. Logo ele, sobre quem o escritor uruguaio, Eduardo Galeano, disse: “de Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer”.
Sem falar do que ocorreu no célebre caso do jogador do Fluminense, Carlos Alberto, que branqueou a sua pele com pó de arroz para fugir ao preconceito, em jogo realizado, ironicamente, no dia 13 de maio (data que marca o fim da escravidão) de 1914.
No clássico livro “O negro no futebol brasileiro”, de 1947, Mário Filho narra a trajetória dos descendentes de escravos em sua luta por inclusão no futebol, pautado pelos valores elitistas do regime amador de seus primórdios. Segundo o autor, na década de 1920, por meio de clubes de formação popular, como o Bangu, o Vasco da Gama e o São Cristóvão, os negros pressionaram os dirigentes pela adoção do regime profissional, garantindo espaço de destaque na Copa do Mundo de 1938.
A década de 1930, além de marcar a adoção do regime profissional no esporte, foi palco de importantes elaborações teóricas a respeito da identidade do país. “Casa grande e senzala” (1933) e “Sobrados e mucambos” (1936), de Gilberto Freyre, são obras referenciais no que diz respeito ao elogio da mestiçagem enquanto trunfo da cultura nacional. E Freyre, em sua veia interpretativa, arrisca-se também no terreno do futebol. Para o consagrado antropólogo, a conversão do “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, por influência dos movimentos corporais do samba e da capoeira, seria resultado do processo de mestiçagem verificado no Brasil.
O samba e a capoeira, manifestações de matriz claramente africana, com raízes profundas nas religiões tradicionais dos negros, aparecem, então, “sublimados” na interpretação de Freyre, traduzidos como produto do que se chamaria de democracia racial, assim como ocorre, por extensão, com o modo característico de jogar futebol do brasileiro. A contribuição do negro é “promovida”, assim, à categoria de “progresso da mestiçagem”. Em última análise, é possível dizer que temos, desse modo, a realização do ideal de homogeneização de nossa sociedade no mundo das especulações interpretativas sobre o Brasil.
Edições posteriores do livro de Mário Filho acompanham também a saga do negro no futebol até a realização da Copa de 1958, a primeira vencida pelo Brasil. Como não poderia deixar de ser, um dos momentos mais marcantes da narrativa de Filho refere-se à “tragédia”, à derrota da seleção brasileira para o Uruguai na final da Copa de 1950, no Maracanã. Diz o autor sobre a responsabilização ocorrida após o fracasso:
“Assim, três pretos foram escolhidos como bodes expiatórios: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os outros mulatos e pretos ficaram de fora: Zizinho, Bauer e Jair da Rosa Pinto. Era o que dava, segundo os racistas que apareciam aos montes, botar mais mulatos e pretos do que brancos no escrete brasileiro”.
Essa passagem permite perceber a persistência do preconceito racial no país após o advento das ideias do “futebol mestiço” e da “civilização mestiça”. Na ocasião em que a nacionalidade brasileira sofria um duro golpe dentro das quatro linhas, assim como costuma ocorrer cotidianamente nos momentos de acirramento social - como na busca por colocação no mercado de trabalho, por exemplo -, fomos divididos em dois grupos: os brancos e os não brancos, os culpados, os negros. Nem o coroamento da geração de Pelé e Garrincha, com o bicampeonato mundial, nem o ápice da demonstração do futebol-arte, transmitido ao vivo pela televisão, durante a Copa de 1970, foram capazes de extinguir o racismo à moda brasileira, aquele que está sempre escamoteado, com vergonha de si mesmo, mas que não se abstém de atuar.
Depois de Barbosa, o primeiro goleiro negro a defender a seleção brasileira, como titular, em Copas do Mundo foi Dida, em 2006, após 56 anos de um sinistro intervalo. Nenhuma outra posição, do lateral-direito ao ponta-esquerda, ficou tanto tempo sem ser ocupada por um negro no time nacional. E, hoje, as ocorrências de racismo no futebol continuam a ser registradas dentro e fora do país.
Na semana em que se celebra a consciência negra no Brasil, é preciso retomar tal contribuição futebolística, dando ao negro o que é do negro. A ancestral concepção festiva da vida permitiu, aos descendentes de escravos, introduzirem um modo peculiar de tratar a bola e de ser brasileiro, um jeito de jogar e de viver voltado ao prazer e à beleza, que está na base do que se pode chamar de identidade nacional brasileira.
Felipe Carrilho é historiador e autor do livro “Futebol, uma janela para o Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira”.
*Artigo publicado originalmente em edição de novembro de 2009, do jornal Brasil de Fato, e agora revisto e ampliado pelo autor.