DIÁRIO DA CHINA

Eu vi a história da China da Nova Era sendo feita

Um pouco sobre a minha experiência durante cobertura do principal evento político da potência asiática

Créditos: Acervo pessoal
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Oi, pessoas, estava sumida, né? Pois é. Passei por uma verdadeira tormenta nas últimas semanas. Primeiro, minha saúde. O outono chegou a Beijing e trouxe um frio com vento com o qual nem eu nem meu quadril biônico e coluna empenada estamos habituados. Fiquei muito mal, sem conseguir andar. Cheguei a ir ao pronto socorro, onde fiz exames, fui medicada e orientada a ficar ou de pé ou deitada. 

Por uma semana e meia suspendi todas as atividades e fiquei de repouso para estar recuperada para a cobertura da minha principal tarefa nesta aventura da China: a cobertura do XX Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh). 

Depois de um blend de codeína chinesa e a minha brasileira, emplastros quentes e frios e a solidariedade de colegas que me ajudaram nesse período, estava bem melhor no dia 14 de outubro, data em que iniciamos a cobertura do evento político mais importante do calendário chinês. Era o meu inferno astral chegando, dia 16 de outubro. Completo 49 anos no dia 16 de novembro.

Vista para o Grande Salão do Povo

Acervo pessoal - vista para o Grande Salão do Povo

Eu e meus colegas da América Latina e Caribe e de África fomos para o hotel localizado em frente à Praça da Paz Celestial, com vista para o Grande Salão do Povo, onde funcionou o centro de mídia da conferência e onde eram realizadas as entrevistas coletivas. Ficamos em circuito fechado, e as saídas eram apenas para as atividades relacionadas à nossa cobertura jornalística. 

Outras nacionalidades e correspondentes estrangeiros e a maioria dos profissionais da China continental, Hong Kong, Macau e Taiwan ficaram hospedados em outros hotéis. Todos os dias tínhamos que fazer o teste de Covid no hotel. Para uma das atividades, a cobertura do encerramento do congresso, tivemos que fazer dois PCRs em um único dia. 

Ao todo, 2.500 jornalistas estavam credenciados para cobrir o evento, desses, 750 eram estrangeiros. Havia uma enorme estrutura, com internet dedicada, circuito fechado para transmissão das entrevistas e tradução simultânea para o inglês. 

Computador de pau

Acervo pessoal - Quentinha para a abertura do Congresso.

Tudo pronto para a minha tarefa. Certo? Nada disso. A tela do meu computador rachou e o equipamento simplesmente não ligava mais. Pense na minha frustração. Já tinha tudo planejado para a cobertura, mas me vi sem minha ferramenta de trabalho, apenas com o celular. 

Aos trancos e barrancos fiz o primeiro texto e pedi ajuda ao diretor do Centro Latino-Americano e Caribenho do programa do qual participo, que depois de muito esforço e negociação conseguiu uma máquina emprestada para eu conseguir trabalhar. 

Só é possível para um jornalista estrangeiro trabalhar usando VPN, um tipo de aplicativo que permite ultrapassar a verdadeira Grande Muralha da China, que é o firewall que impede acessar sites do ocidente. Eu precisei instalar por conta própria esse recurso no computador emprestado e me conformar a só ter acesso às minhas redes e sites de trabalho até 22h, quando o centro de mídia fechava. No quarto, a VPN não funcionava. 

Ocorre que minhas fontes estão no Brasil, com uma diferença de 11 horas de fuso. Então eu apurava à noite e parte da madrugada e corria para o centro de mídia para escrever. Outra gambiarra, o teclado não era configurado para o português, então era uma gincana de escrever no celular, mandar para mim mesma pelo WhastApp e outros jeitinhos que até agora eu não sei como eu consegui. Diante dessas condições, a minha produtividade despencou. Tentei compensar na qualidade. Espero ter tido êxito. 

A história diante dos meus olhos

Acervo pessoal - Na coletiva do anúncio oficial da reeleição de Xi Jinping

Independente de toda essa perrengue, eu vivenciei um momento histórico. Acompanhei a abertura do evento no Grande Salão do Povo. Ouvi sem entender uma palavra o discurso em chinês e sem tradução de Xi Jinping. Obtive uma versão oficial em português brasileiro assim que saí da solenidade e me debrucei sobre o texto.

Na saída, fora do prédio, fui abordada por uma repórter de tevê de uma emissora taiwanesa. Ela quis saber minha opinião sobre a 'questão de Taiwan'. Ora, Taiwan é da China, respondi para a colega incrédula. Ela insistiu: você acha que deve haver diálogo?. Eu prossegui, bem, a China não vai invadir um território que sempre foi dela e nunca vi esse país ter um comportamento bélico. Ela reforçou a cara de incredulidade, agradeceu e foi embora. Eu ri. No meio de tanto repórter ela escolhe logo uma marxista e pró-China.

Naquela altura eu havia lido por alto o teor da fala de Xi. Mas a verdade é que ali naquele informe político não havia novidade, as realizações eram de amplo conhecimento, em especial a eliminação da extrema-pobreza para mais de 800 milhões de pessoas, os avanços tecnológicos, e o enfoque na segurança. Isso inclui segurança para o povo, o país, a economia, a habitação, a cultura e, claro, envolve a questão de Taiwan. Além da opção do desenvolvimento com qualidade, um aspecto que merece muita atenção do Sul Global. 

Jornalista estrangeiro é notícia

Acervo pessoal - Entrevistada por jornalista chinês

Algo muito curioso é que quem faz notícia virou notícia para a mídia chinesa. Eu perdi a conta da quantidade de entrevistas que eu dei sobre as minhas expectativas e avaliações sobre o congresso. 

Eu e os colegas jornalistas de vários países do mundo trocamos muitas impressões sobre o discurso de Xi, a expectativa da reeleição dele para o terceiro mandato consecutivo e o que isso significa para o mundo e, em especial, para nossos países em desenvolvimento. Um ponto em comum: todos e todas nos demos conta de que vivenciamos um momento histórico que vai ecoar nas nossas nações nos próximos anos e que o eixo do poder do mundo está mudando neste momento. 

Treta com características chinesas

Acervo pessoal- Momento em que Hu Jintao sai do Grande Salão do Povo

Ao longo da semana foram promovidas diversas coletivas de imprensa. No sábado, o encerramento do congresso. Mais uma vez no Grande Salão do Povo, sequer me dei conta que fotografei o momento em que o ex-presidente Hu Jintao saiu da mesa onde estava o Presidium do XX Congresso Nacional do PCCh e que deu pano para manga na mídia ocidental. A maioria, pura especulação e ignorância que ofuscou a importância do que está ocorrendo na China agora. 

Assim que voltamos para o hotel depois do encerramento eu estava com uma enxaqueca terrível, tomei um remédio e fui descansar no escuro por algumas horas com o celular no silencioso. Acordei para voltar ao trabalho e me surpreendi com mensagens de amigos sobre a polêmica. Ciente do ocorrido, eu imediatamente associei à minha memória política de quem acompanha o Congresso Nacional no Brasil há décadas.

Em solo brasileiro as confusões políticas são explícitas, tem cuspe, tiro, granada, mamadeira de piroca, fake news a rodo com direito a "pintou um clima". Na China até as tretas têm "características chinesas". Eu não sou capaz de tratar desse tema, pois não tenho informações sobre o que ocorreu, não compreendo a dinâmica das solenidades nem o conjunto de símbolos e considero um assunto sem importância diante do conteúdo da fala de Xi Jinping. Deixo para os colegas que se empenham em ilações e leituras labiais e criam narrativas a partir de achismos. 

O nascimento da China da Nova Era

Acervo pessoal - Xi entra no local da entrevista depois de reeleito para o terceiro mandato de secretário-geral do PCCh

No domingo, já com o evento encerrado, ainda participei da última atividade oficial: a coletiva de imprensa com o novo secretariado do Birô Político do Comitê Permanente do Comitê Central do PCCh. A confirmação do terceiro mandato de cinco anos de Xi e os seis homens que vão comandar o partido que governa a China. A cúpula do Politburo. Fiquei a dois metros de Xi e seus principais auxiliares quando eles entraram na sala preparada para o anúncio para a imprensa. 

Agora, nessa semana de ressaca de presenciar a história sendo feita, consegui consertar o meu computador e estou organizando as ideias para seguir escrevendo sobre o que esperar da China nos próximos cinco anos e como isso impacta no Brasil. Mas só depois de eleger Luiz Inácio Lula da Silva, tá? 

Beijinhos de Beijing e 13 neles!