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O futuro da televisão não se dará apenas no campo das tecnologias. Será definido pelas pessoas. Pelos hábitos, consumo, negócios e políticas. Será definido por nós, será definido pela sociedade
Texto publicado na Revista da SET: Volume 23 - número 147. Págs 76 a 84
[caption id="attachment_1091" align="alignleft" width="300"] Sessão discutiu o futuro da televisão no Brasil e América Latina no Congresso SET 2014[/caption]
Apesar do consenso de que o futuro da televisão será diretamente influenciado pelas inovações tecnológicas, pelos hábitos das pessoas e tendências em comercialização publicitária, o futuro da TV ainda se mostra bastante incerto. Principalmente, porque os diversos mercados televisivos de diferentes países têm contextos e estratégias próprias para lidarem e se adaptarem à nova realidade provocada pelas plataformas e dispositivos de distribuição de conteúdos audiovisuais disponíveis atualmente.
Não por acaso, três importantes sessões do Congresso SET 2014 trataram do tema “futuro da TV” sob estes aspectos. A primeira sessão, moderada por Fernando Bittencourt (SET/FB Consultoria), trouxe para o debate as questões tecnológicas envolvidas no futuro da televisão, com ênfase na adoção dos formatos Ultra HD (4K e 8K). Na segunda sessão, Roberto Franco (SET/SBT/Fórum SBTVD) abordou o tema focando os novos hábitos de consumo da audiência e a relevância da televisão no mercado brasileiro e latino-americano. Por fim, Nelson Faria Jr (SET) moderou a sessão que tratou das tendências de exibição e comercialização publicitária e as fontes de viabilização econômica da televisão.
O que se pode aferir após horas e horas de debates e explanações dos palestrantes convidados é que mitos e verdades têm-se dissipado no meio profissional e acadêmico sobre o futuro da TV. Neste artigo trataremos de alguns deles, com o propósito de alicerçar as discussões que ainda estão por vir sobre um tema complexo e de extrema importância, não só para a indústria do entretenimento, mas também para a continuidade dos regimes democráticos que permitem à televisão exercer livremente seu papel.
Mas, para isso, é preciso recorrer à história para se ter a real dimensão da estreita relação entre a televisão e os aspectos sociais e econômicos envolvidos no consumo televisivo por parte da audiência. Nosso modelo de televisão se espelhou no mercado americano broadcast e foi concebido e desenvolvido para atender às demandas de uma sociedade parcialmente industrial que se formara no Brasil no período pós-guerra.
No período anterior, o setor agrícola contribuía com 27,8% do PIB e ocupava 60% da população ativa. Com o fim da Segunda Grande Guerra, as importações foram drasticamente reduzidas forçando ao país introduzir uma política de industrialização que substituísse as importações pela produção interna dos produtos, além do aumento das exportações para mercados devastados pelo conflito.
Ao fim da guerra, o Brasil era um dos maiores exportadores mundiais de tecidos. Nos períodos anteriores o Brasil possuía em reservas US$ 71 milhões, saltando para US$ 708 milhões em 1945. Esta política de industrialização resultou em altos índices de crescimento econômico passando de 1,8% do PIB em 1947, para 7,7% em 1954 e que se manteve com regularidade até 1961 com 7,7%.* Este período de crescimento resultou em uma aceleração na urbanização do país e na transferência da mão-de-obra do campo para as cidades. Ambiente favorável para se instalar no Brasil um veículo de comunicação voltado para as massas e extremamente moderno: a televisão.
Com as pessoas trabalhando nas fábricas, seus hábitos e rotinas foram se estabelecendo ao longo do tempo e a televisão foi se adaptando aos “horários das fábricas”, oferecendo uma programação diversificada e “copiada” do rádio, o veículo de maior penetração na sociedade brasileira. Em 1958, 64% dos aparelhos radiofônicos estavam ligados recebendo a transmissão da final da Copa do Mundo de Futebol. Mas, em 1965, a televisão já impactava o mercado publicitário e a sociedade brasileira (ver quadro abaixo).
Comparando com os números atuais, a televisão manteve o crescimento e sua relevância para a população, tornando-se o maior veículo em penetração e investimento publicitário.
Mesmo frente à internet, a televisão não teve sua liderança ameaçada no Brasil, e mais, ela continua crescendo. Foi o que demonstrou Roberto Franco para aqueles que estiveram presentes na sessão: “Cenários & Tendências: Hot Session. O Futuro da mídia. Hábitos de consumo”. Os dados apresentados mostram um cenário muito promissor para a TV aberta brasileira em um futuro próximo, “basta que o ecossistema conheça cada vez mais seu público, que está deixando de ser aquele formado no início da nossa história televisiva”, ressaltou Franco.
A sessão teve início com a apresentação dos dados do Painel Nacional de Televisão (PNT) e a forma como são obtidos. São quinze mercados divididos pelo país criando uma amostra que representa 21 milhões de lares no Brasil. Os números da audiência nacional vêm crescendo de 2008 até o momento, reflexo do aumento da população, dos números de televisores nos lares e, consequentemente, dos aparelhos ligados. “É o que chamamos de bônus demográfico”, afirmou Franco. Corrobora este cenário o grande consumo da mídia TV frente a outras plataformas, 93% da população assiste TV apenas no formato tradicional. O mercado de TV brasileiro vem se mostrando muito lucrativo, se comparado a outros países. As projeções para os investimentos em publicidade na indústria de entretenimento e mídia para os próximos cinco anos deverão crescer 10,2% até 2018, enquanto o mercado global é de 5%. Já a publicidade na TV deverá crescer 9.1%, com previsão de faturamento de U$ 9 bilhões apenas na TV aberta***.
Nos Estados Unidos as transformações ocorrem mais rapidamente do que em outros mercados. Lá, o acesso à tecnologia (tablets, smartphones, TV conectada, banda larga) está obrigando os produtores de conteúdo a formular estratégias e novas oportunidades de negócios que atendam a audiência que vem sendo formada por meio destes dispositivos. A penetração da internet é mais importante hoje do que a do cabo, 40% dos aparelhos de TV nos Estados Unidos são SmarTV.
O mercado da América Latina é muito parecido com o brasileiro. A TV aberta possui grande relevância em países como Equador, Bolívia, dentre outros. Estima-se que 40 milhões de pessoas serão incluídas na audiência da TV até 2015, 74% da população assiste televisão ao vivo. Mas temos a consciência de que este cenário pode mudar. Roberto Franco resumiu bem o que vem pela frente: “temos um consenso; a mudança está acontecendo. As mídias de massa vão continuar existindo, a maneira como relacionamos com elas é que vai mudar, mas isso não quer dizer que um meio irá acabar com o outro”. O caso brasileiro pode ser explicado pelo seu processo de industrialização e os momentos favoráveis da economia que permitiram a uma considerável parcela da população acender à classe consumidora que, consequentemente, incentiva o investimento publicitário.
Contudo, nos mercados de países desenvolvidos essa situação é diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, 40% dos jovens assistem mais produtos audiovisuais pelo YouTube do que pela televisão. Mas, assim como no Brasil, o período pós-guerra foi determinante para que a indústria de televisão norte-americana, permitindo que ela viesse a se tornar a maior do mundo.
Durante a Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos aproveitaram toda sua infraestrutura industrial, ociosa desde a grande depressão de 1929 e abasteceram os aliados com armamento bélico e alimentos. Para isso, recrutaram um enorme contingente de força de trabalho feminino. Os salários pagos às mulheres aumentaram em 12% o consumo. Onze mil supermercados foram inaugurados em três anos. O consumo, que era negativo em 1934, de - US$ 4 milhões saltou para US$ 42 milhões positivos, em 1945. A Renda da família norte-americana já era 15 vezes maior do que a renda das famílias europeias. Em 1946, de poucas centenas de aparelhos televisores existentes nos Estados Unidos, o número saltou para mais de 60 milhões em 1970. Nesse mesmo ano, a indústria televisiva norte-americana produzia mais programas de TV que qualquer outra no mundo. O norte -americano gastava, em média, mais de cinco horas por dia assistindo televisão, e 70% da população adulta assistia TV. Mas, em 1977 a TV paga ultrapassou a audiência da TV broadcast e, deste então, os números nunca mais pararam de cair.
Atualmente, pouco mais de 10% da audiência norte-americana sintoniza os canais abertos. Por que isto aconteceu? Porque a sociedade mudou. Com a desregulamentação do sistema financeiro norte-americano, a queda do muro de Berlin e a globalização, grande parte da indústria norte-americana foi transferida para a Ásia. O sincronismo entre a vida cotidiana das pessoas e a grade de programação das emissoras foi se deteriorando.
Hoje, com a internet banda larga chegando em 90% das casas e o acesso pelas operadoras de celular, as pessoas que não mais podiam consumir televisão acompanhando a grade de programação encontraram nestes dispositivos uma alternativa. Surgia a TV em “qualquer hora” e “em qualquer lugar”. Porém, o modelo de negócios da televisão ainda se baseia no modelo construído para a Era Industrial e não para a Era Informacional, ou seja, ainda calculamos o valor do comercial pelo tamanho da audiência.
A nova sociedade informacional norte-americana ainda consome televisão, mas por meio da TV paga e da internet via banda larga. Em 2005, havia duzentos milhões de computadores conectados à internet nos lares. Atualmente, mais de um quinto de todas as residências com assinaturas de TV paga nos Estados Unidos assistem à TV on-line por meio de várias telas. Alcançar esta nova audiência não tem sido uma tarefa fácil.
Este foi o tema principal discutido na sessão moderada por Faria Jr. “Embora todos concordem que muito em breve a televisão não será a mesma, ninguém pode dizer com certeza como será esse processo”.
Assim, Nelson Faria Jr (SET) deu início a sessão: “Cenários & Tendências: Hot Session: As novas tendências de exibição e consumo de mídia”, que pretendeu abordar o consumo das tecnologias que em breve estarão disponíveis, e como a publicidade pode alcançar esta nova audiência. Conteúdo transmídia, TV Híbrida, publicidade interativa, TV Everywhere, personal streaming, TVs conectadas, second screen, rupturas de modelos e novos players já são a realidade do contexto brasileiro, mas em números que ainda não confrontam os números da TV aberta no Brasil.
Por conta deste ambiente ainda favorável as predições quanto ao futuro da televisão, no geral, caminham para os extremos. Por um lado, há aqueles que defendem que a TV brasileira ainda será relevante por muito tempo. Do outro, há quem pregue o fim da televisão ou de algumas emissoras. Para qual lado à balança irá pender? Isto depende de mais um ingrediente além dos aspetos econômicos e sociais: as políticas de comunicação. Este fator é o que realmente poderá por fim à transmissão pelo ar em alguns países, ou acrescentar ainda mais desafios à TV brasileira.
A questão do uso do espectro é um assunto bem mais urgente do que usos e costumes da audiência. A demanda inflacionada nos Estados Unidos, congestionamento no Japão, indefinições na Europa estão fazendo com que todos da indústria voltem a atenção para a conferência da UIT em 2015 em relação ao uso do espectro para a televisão terrestre. Masahiko Fujimoto, vice diretor geral da ARIB (Association of Radio Industries and Businesses) entidade responsável pelos relatórios e padrões técnicos no Japão demonstrou sua preocupação com atual momento da radiodifusão do Japão no que diz respeito às demandas do espectro. Fujimoto apresentou uma extensa gama de dados que comprovam a situação delicada de seu país e pontuou a necessidade do sistema broadcast em situações de crise. O executivo relatou um acontecimento ocorrido durante o Tsunami de 2011 que salvou 40 mil vidas durante o desastre, quando a TV aberta emitiu sinais de alertas pelo sistema On-seg salvando a vida das pessoas que estavam no metrô.
Mas, apesar das nuvens de tempestade no horizonte a Hot Session “Broadcasters: os desafios do futuro”, moderada por Fernando Bittencourt (SET/ FB Assessoria e Consultoria) debateu com Yasuto Hamada (NHK), Roland Beutler (EBU) e Hugo Gaggione (Sony) o futuro da tecnologia na televisão. Os representes dos mercados europeu, asiático e norte- americano estão enfrentando, de forma diferente é claro, o momento transitório pelo qual passa a indústria televisiva em seus países. Porém, alguns pontos são comuns, tais como a Ultra Alta Definição, o vídeo sobre IP e serviços de OTT. São pontos em comum, mas que nem por isso deixam de ser também um desafio.
[caption id="attachment_1092" align="alignright" width="300"] Yasuto Hamada (NHK) afirma que “não gastaria tanto dinheiro no sistema 4K”[/caption]
Questionado por Bittencourt qual seria a melhor opção para a indústria televisa; adotar o padrão 4K ou esperar pelo padrão 8K, Yasuto Hamada respondeu com toda a gentileza japonesa que se a decisão fosse exclusivamente dele, ele “não gastaria tanto dinheiro por agora no sistema 4K”.
Uma simples frase, mas que impacta todo um mercado desde a fabricação de equipamentos à produção de conteúdos.
São inúmeros fatores, inúmeras possibilidades e cenários que estão por vir, que envolvem um contexto social muito maior, no qual a televisão se adapta e se molda, tornando-se espelho da sociedade na qual ela está inserida. Como afirma Arlindo Machado, “a televisão é aquilo que fazemos dela”. Mas, talvez, a síntese que expressa o caminho que está por vir esteja na afirmação de Fernando Bittencourt.
“É muito difícil falar sobre o que vai vir, e mesmo que falemos, não é tudo, pois outros aspectos, além da engenharia é que estão definindo o futuro. O tempo é fundamental e sozinhos não conseguimos fazer, depende dos negócios e das pessoas”.
Referências:
* Industrialização e o Desenvolvimento Econômico do Brasil. Werner Baer. FGV, 1983
** A voz do Povo: o IBOPE do Brasil. Silvana Gontijo. Objetiva, 1996
*** Global E&M Outlook - Overview 2014-2018 / Cenários Brasil, América Latina e Global.
(Foto de capa: Marcos Santos/USP Imagens)