A Abraji (aquela associação de jornalistas que confunde “jornalismo investigativo” com “checagem de informação”) divulgou o “Guia para Consumidores de Notícias” do jornalista norte-americano Bob Garfield com “11 dicas simples para separar o joio do trigo”. E, claro, o joio são aqueles sites e blogs suspeitos de Fake News com “muita publicidade, banners e pop-ups”. Bem vindo ao mundo das “plataformas de fact-checking” que, assim como fazem as próprias notícias falsas, requentam o prato frio das Fake News, tão velhas quanto a história do jornalismo. Mas para os "checadores", as notícias falsas surgiram só depois de cinco séculos de jornalismo, com a Internet, para profanar a inocência das vestais da grande imprensa. Fake News é a nova mitologia publicitária para valorizar o produto notícia mediante a produção da “escassez” informativa e também um novo selo de controle de qualidade para "separar o joio do trigo” e manter o monopólio informativo da grande imprensa. Além de ser mais uma arma da guerra híbrida: uma “plataforma de fact-checking” para cada país com “eleições, corrupção e crise política”.
Parem as máquinas! Desliguem as rotativas! Segurem nas garagens os caminhões de entrega dos jornais! Os “checadores”, a nova especialidade dentro do Jornalismo, fizeram uma surpreendente descoberta que pode abalar os pilares da profissão: as notícias falsas (ou “Fake News”) existem! E são uma ameaça, principalmente no ano eleitoral brasileiro que se inicia!
Não importa se em 1859 o cartunista Frederick Opper já publicava uma charge sobre as Fake News na imprensa (veja abaixo); ou se em 1991 o jornal Notícias Populares publicava a manchete em seis colunas “Caiu de Boca na Angélica” apenas para contar a história de uma dona de um bar que se atirou do quinto andar de um prédio da Avenida Angélica em São Paulo.
Não importa quão recorrente sejam as notícias falsas na história do jornalismo. Não! Agora as Fake News são o novo hip do jornalismo hipster patrocinado pela imprensa corporativa. Um perigo que furtivamente se esgueira através das mídias sociais e sites da Internet para profanar a inocência das vestais da grande imprensa.
E a “ferramenta” para detectar essa ameaça chama-se “fact-checking” que funciona em “plataformas” específicas em “portais de checagem”.
O papel aceita qualquer coisa
Desde da invenção da prensa por Gutenberg, em 1447, ficou demonstrado que o papel aceita qualquer coisa, seja a verdade ou a mentira. Assim como a invenção da fotografia veio ao mundo simultaneamente com a possibilidade da retocagem do negativo como mostrou em 1855 um fotógrafo alemão na Exposition Universelle de Paris.
Para mais tarde, no século XXI, o jornalismo hipster descobrir que de repente blogs, sites e redes sociais vieram ao mundo corromper a produção das notícias cinco séculos depois. E para enfrentar a ameaça digital, a grande imprensa, tributária da revolucionária invenção de Gutenberg, muniu-se de “ferramentas” e “plataformas” para patrocinar portais de fact-checking em todo o mundo – atualmente uma rede de 137 plataformas em diversos países.
E ainda é capaz de incentivar o Estado a criar projetos de lei contra as Fake News como o presidente da França Emmanuel Macron para “forçar o controle do conteúdo publicado na Internet” e o presidente do TSE, Gilmar Mendes, formalizar a criação de uma “força tarefa” para propor “medidas contra a disseminação de notícias falsas nas eleições desse ano”.
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Cada época com as suas "Fake News" |
É claro que em séculos de história do jornalismo falava-se em “imprensa marrom” e “sensacionalista” (como a da manchete do suicídio citada acima), na verdade diferentes rótulos de cada época para as “Fake News”, salvaguardando a notícia como um produto que promete objetividade e isenção.
Fake News e o mercado de notícias
Talvez os jornalistas hipsters não saibam, mas a etiqueta de qualidade “Fake News” é o novo rótulo para a velha estratégia mercadológica: manter o valor de mercado das notícias quando está ameaçado pela variedade de fontes e publicações disponíveis graças à tecnologia digital. Essa é a regra básica do mercado no capitalismo: o valor de uma mercadoria é determinado pela sua escassez. Publicações noticiosas em excesso diminui o valor de mercado das notícias, pelo menos no nível esperado pelos grandes e tradicionais veículos noticiosos. Além de muitas vezes deixar nuas as próprias notícias falsas da grande imprensa.
Portanto, Fake News é uma nova mitologia publicitária para valorizar o produto notícia mediante a produção da “escassez” informativa e também um novo selo de “controle de qualidade” parar separar o “joio do trigo” e manter o monopólio informativo da grande imprensa.
O semiólogo e filósofo francês Roland Barthes (1915-1980) foi um estudioso sobre o papel das modernas mitologias na sociedade – para ele uma estrutura linguístico-semiológica despolitizadora da realidade: não nega fatos e eventos, fala deles. Porém, inocenta-os, purifica-os. Preenche uma realidade histórica com natureza para eterniza-la. Despolitiza ao extrair da realidade História e contexto - leia BARTHES, Roland, Mitologias, Difel, 2002.
Roland Barthes versus Bob Garfield
Um exemplo é o “Guia para Consumidores de Notícias” (clique aqui) divulgado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – Abraji. Aquela associação que confunde “investigação jornalística” com “checagem da informação”.
O guia foi apresentado pelo jornalista norte-americano Bob Garfield no seu podcast On The Media. Garfield é um intelectuais orgânicos do mainstream da grande imprensa dos EUA cujo trabalho atual é o de procurar alinhar as visões de mundo dos executivos de alto nível, proprietários de mídia e acadêmicos em encontros que cria como o Media Future Summit, desde 2015.
Além do próprio título ser uma pérola da despolitização que faria Barthes pular da cadeira de sua escrivaninha (leitores e telespectadores na esfera pública são traduzidos como “consumidores” de notícias), as 11 dicas para “ajudar a separar o joio do trigo” são de uma platitude e ingenuidade flagrantes: são dicas dedicadas à desmontagem das Fake News na Internet. Mas parece que a História evaporou quando todas as “dicas” passam a se referir unicamente à realidade atual dos países com “crises políticas, eleições e corrupção” que fazem parte da rede de plataformas fact-checking.
Na verdade são princípios básicos da prática jornalística de qualquer época e que hoje são divulgados como grandes novidades. Por trás desse hip de caça às Fake News esconde-se a própria precarização das redações da grande imprensa: com o enxugamento do número de jornalistas das redações e flexibilização das relações trabalhistas pela crise econômica e a concorrência das mídias digitais, esse mínimo necessário para a prática profissional é terceirizado pelas agências de fact-checking. Enquanto repórteres viram “jornalistas sentados” que apenas “cozinham” matérias.
Onde estão as Fake News?
Embora o guia não admita, e passa longe da percepção dos checadores, cada um dos 11 itens pode facilmente ser aplicado à grande imprensa, e não apenas a sites falsos ou endereços repletos de pop-ups publicitários, ansiosos pelos cliques dos internautas.
Para começar, o guia fala em “manchetes inteiras em maiúsculas e fotos manipuladas”. Ora, isso é recorrente nos jornalões da grande imprensa como a falsa foto da ficha criminal do DEOPS da presidenta Dilma Roussef imortalizada na primeira página da Folha em 2009. Sem falar que o próprio fotojornalismo evoluiu das fotos-choque para fotos posadas, estrategicamente compostas para impactar e viralizar como nas manifestações no Brasil de 2013-16.
O mais risível é quando recomenda desconfiar de sites com muitos banners e pop-ups: poderiam conter notícias que serviriam apenas de chamariz para atrair os cliques dos internautas. O que dizer então dos penduricalhos publicitários que poluem a leitura dos jornalões como capas promocionais, cintas que envolvem o jornal, encarte, anúncio gigante duplo, anúncios 3D, “shapes”, “colagem”, “origami”, “outside”, sobrecapas, “window” etc.?
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