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Uma fábula moderna inspirada em um mangá, onde é feita uma releitura de Pinóquio com um toque erótico: uma boneca inflável de sex shop inexplicavelmente ganha vida, ganha as ruas e procura entender o que nos define como humanos. Mas tudo que descobre é que nós somos tão vazios espiritualmente como uma boneca é vazia fisicamente. O filme “Boneca Inflável” (“Kûki Ningyô”, 2009) de Hirokazu Koreeda baseia-se em um específico problema sócio-cultural japonês (o “kodokushi”, morte solitária), mas sua reflexão sobre a solidão urbana, inércia, sonhos derrotados e a perda da inocência de uma boneca erótica aspira a um tema bem universal: o fetichismo dos produtos e serviços.
Ao longo do século XX a sociedade japonesa conseguiu combinar muitos hábitos e instituições feudais com o moderno dinamismo cultural e econômico do Capitalismo Tardio. Mas com um preço alto: fragilização dos laços familiares e uma conduta de boa parte da sociedade japonesa de evitar qualquer tipo de situação que possa incomodar outra pessoa. Chamam essa atitude de “meiwaku”.
Isso criou uma sociedade de solitários cujas vidas podem terminar em um triste desfecho: o “kodokushi” (“morte solitária”) – a cada ano milhares de japoneses são encontrados mortos em suas casas e só são descobertos depois de semanas. O “kodokushi” atinge em especial a terceira idade, mas nos últimos anos verifica-se um crescimento também na faixa entre 30 e 40 anos.
Um dos melhores cineastas japoneses da sua geração, Hirokazu Koreeda decidiu aproximar essa triste realidade das grandes metrópoles com a metáfora das bonecas eróticas de vinil infláveis de sex shop – tão vazias por dentro quanto a vida de seus solitários proprietários que necessitam de um substituto do desejo sexual.
Adaptado de uma pequena estória de mangá, surge o filme Boneca Inflável onde Koreeda cria uma espécie de versão japonesa de Pinóquio, com um toque erótico. Um dia em um bairro proletário de Tóquio uma boneca erótica chamada Nozomi (“esperança” em japonês) descobre que se tornou uma mulher real.
O conceito de uma força estranha ou alienígena experimentando uma existência humana é um tema familiar no cinema. Ex Machina (2015), Ela (2013), Inteligência Artificial (2001), Cidade dos Anjos (1998) etc. Filmes que em geral apresentam um robô ou inteligência evoluindo para adquirir características humanas artificiais.
Mas em Boneca Inflável temos uma protagonista menos provável: uma boneca sexual inflável que após ganhar vida sai pelas ruas com uma fantasia de empregada doméstica sexy, tentando compreender o que torna as pessoas humanas. E para sua surpresa, encontrará apenas solitários e vazios de esperança. Humanos que em muitos aspectos são tão vazios quanto ela.
O Filme
Nozomi é uma boneca erótica de Hideo, um solitário que a trata como fosse a esposa que ele nunca terá – senta-a à mesa para jantar e toda noite conta como foi o seu dia de trabalho antes de leva-la para a cama. Toda noite faz para Nozomi devaneios auto-importantes sobre o seu dia de trabalho como fosse em uma importante empresa com funções de grande responsabilidade – na verdade Hideo é um simples garçom.
Na manhã seguinte inexplicavelmente Nozomi ganha vida (ela descreve esse processo como “ganhar um coração”) numa delicada sequência quando experimenta a emoção sensual de um pingo de água da chuva escorrendo pela sua mão. Seu primeiro pensamento na recém-descoberta da consciência é “beau-ti-ful!”. Uma sensação de maravilhamento pelos pequenos detalhes que em todo filme será o contraponto com a desesperança dos humanos.
Depois de explorar secretamente o interior da casa de Hideo enquanto ele está no trabalho, Nozomi ganha às ruas até ganhar um emprego em tempo parcial em uma locadora de vídeos quando começa relacionamento amoroso com um tímido e também solitário funcionário.
Na loja ela aprende sobre o mundo mais amplo representado nos filmes através da fina ironia do diretor Koreeda – os DVDs são sonhos feitos de plástico, não muito diferente do material que se constitui a própria Nozomi.
A escolha da atriz coreana Doona Bae (Cloud Atlas e Sense8) não poderia ter sido mais feliz: como uma estrangeira em uma sociedade japonesa, ela consegue com seu olhar e jeito infantil ser ao mesmo tempo triste, sensual e enfática. Com seu fraseio em staccato e seu jeito de caminhar infantil no vestido de empregada doméstica francesa, a narrativa consegue enfatizar a inocência e vulnerabilidade de Nozomi numa grande cidade japonesa.
Sua curiosidade é despertada por qualquer pessoa que encontra, mas suas reações não são páreo para seu próprio espanto com tudo o que vê: apenas a felicidade frustrada nos personagens ao longo do filme.
Ironias e paradoxos
Embora o tom seja delicado, leve e bem-humorado em muitas sequências impagáveis (como, por exemplo, quando acidentalmente fura seu braço em uma prateleira da locadora e começa a esvaziar diante do assustado Junichi), o filme vai aos poucos adquirindo aspectos sombrios, principalmente na sequência final.
Como o leitor deve ter percebido, Boneca Inflável é cheio de ironias e paradoxos: o vazio físico da boneca e emocional dos humanos, a curiosidade de Nozomi e o tédio e tristeza dos humanos, a protagonista chamar-se Nozomi (“esperança”) num mundo quem perdeu qualquer perspectiva etc.
Mas o maior deles é a solidão em meio a um bairro tão adensado, com tantas vielas e casas coladas umas nas outras. Todos parecem esquecidos em seus pequenos cubículos, apenas à espera da morte – ou “kodokushi”.
O tema da solidão em meio à multidão não é uma novidade para a Sociologia, desde o livro clássico de David Riesman A Multidão Solitária, de 1957. Mas em Air Doll um novo aspecto é acrescentado ao tema: o fetichismo dos produtos e serviços paralelo ao fetichismo sexual da boneca inflável.
O Fetichismo da mercadoria
Em vários momentos de tristeza, Nozomi cai em em si: “sou um substituto dos desejos sexuais”. Mas não só ela. Parece que todos procuram substitutos de qualquer desejo numa intrincada rede de distribuição de produtos e serviços de uma grande cidade: locadoras de vídeos, máquinas de refrigerantes nas ruas, lojas de diversões eletrônicas, restaurantes com garçons sempre sorridentes. Todos de alguma forma travam algum um tipo de relação social, porém sempre mediada por algum produto ou serviço.
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