Invasão de privacidade e exploração sensacionalista das emoções são traços generalizados na cobertura de grandes tragédias pela mídia. Porém, com a Globo há um elemento mais insidioso: depois de décadas exercendo o monopólio político e comunicacional no País, sua auto-centralidade entrou em metástase através do tautismo (autismo + tautologia). A extensa cobertura da tragédia do desastre aéreo do time da Chapecoense deixou mais explícito esse estado patológico no qual a emissora só consegue olhar para além dos muros cenográficos do Projac através de referências que faz de si mesma. Do “turbilhão de emoções” da narração do velório coletivo por Galvão Bueno à insistência como repórteres e locutores tiveram que demonstrar a si mesmos emocionados (chegando a fazer “selfies” com celulares), chorando e até consolados pela mãe de um dos jogadores, é como se o tempo todo repetissem: “tenho emoções, logo a tragédia é real!”. Chegando a um surreal “Efeito Heisenberg”: o global Galvão Bueno narrando o outro global Cid Moreira lendo a Bíblia com a mesma inflexão de voz com que lia as notícias do “Jornal Nacional” e narrava as peripécias do Mister M.
Globo expõe metástase do tautismo na tragédia da Chapecoense
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O hábito do cachimbo entorta a boca. Por décadas a TV Globo usou e abusou do recurso de metalinguagem (falar de si mesma) como forma de demonstração do seu monopólio e poder absoluto na comunicação social brasileira: não se limitava transmitir um acontecimento. O acontecimento era a Globo transformando o acontecimento em notícia – o repórter sempre foi o protagonista da notícia enquanto a História sempre garantiu exclusividade e pioneirismo para a emissora.
A deferência como o técnico da Itália Enzo Bearzot tratou em toda Copa de 1982 o repórter Ernesto Paglia, a amizade exclusiva de Galvão Bueno com Airton Senna, a forma como praticamente a emissora salvou a cidade do Rio de Janeiro nas enchentes de 1966, a emissora que virou notícia de si mesma com o sequestro de William Waack por forças de segurança de Saddam Hussein na Guerra do Golfo, o jornalista Reginaldo Leme escrevendo o prefácio do livro do CEO da Fórmula 1 Bernie Eclestone etc.
Passagens que a emissora sempre fez questão em destacar, como se a História sempre conspirasse para as câmeras da Globo.
Embora mantenha seu poder econômico e político graças, entre outras coisas, ao BV (Bônus por Volume) para garantir a maior parte do bolo das verbas publicitárias, nos últimos anos a Globo vem sofrendo crescente queda nas audiências e a concorrência das tecnologias de convergência e Internet.
Como destacamos em postagem anterior, a reação global foi abandonar a estética space opera de Hans Donner (adotando um visual mais “orgânico”, deixando o artificialismo metálico) e mergulhar ainda mais na metalinguagem como demonstração de que ainda continua poderosa e influente – clique aqui.
Porém, o cachimbo entortou a boca: essa obsessão pela metalinguagem entrou em metástase, resultando na patologia do tautismo – autismo + tautologia. De tanto falar de si mesma, criou o “fechamento operacional” de um sistema que se tornou obeso – a audiência já não sustenta a folha de pagamento, dependendo a emissora das gordas verbas publicitárias governamentais.
De tão obesa e fechada em si mesma, simplesmente a emissora não consegue mais ver o mundo do outro lado dos muros do Jardim Botânico e da cenografia do Projac. O exterior somente é traduzido a partir de uma descrição que a Globo faz de si mesma.
Ao lado das telenovelas, o futebol é prioridade comercial da TV Globo. Dona do futebol brasileiro (a ponto de “antecipar” com horas de antecedência resultado de sorteio da final da Copa do Brasil – clique aqui), a tragédia do acidente aéreo que vitimou o time da Chapecoense mereceu uma extensa cobertura. Sendo o auge a transmissão de seis horas do velório coletivo em Chapecó, na Arena Condá.
Para quem estuda a evolução das mídias, as transmissões ao vivo ou coberturas extensivas , principalmente de uma emissora em estado de metástase tautista, é uma oportunidade de obter flagrantes dessa tradução auto-referencial que a Globo faz do mundo.
Que ao longo da evolução da linguagem televisiva os jornalistas deixaram de ser simples repórteres para se transformarem em protagonistas das notícias, não é nenhuma novidade.
Porém, na Globo esse traço do telejornalismo também alcançou a metástase: as imagens por si mesmas parecem não conseguir expressar a dimensão exata da tragédia e tristeza que se abateu sobre a Chapecoense, sua torcida e o País. Repórteres e locutores devem constantemente abandonar a função referencial da linguagem para insistirem na função emotiva, centrada no receptor – só para relembrar, há seis funções da linguagem: referencial (sobre o quê a comunicação fala), emotiva (emissor), conativa ou apelativa (receptor), poética (mensagem), fática (canal), metalinguagem (a comunicação falando dela mesma).
No contexto atual da emissora é sintomática a escolha de Galvão Bueno para narrar o velório coletivo em Chapecó. Se em 1994 o velório de Ayrton Senna em São Paulo, narrado ao vivo por William Bonner, deu um caráter jornalístico hard news para o evento, agora, com Bueno, parece que foi transferido para a editoria do jornalismo esportivo
E não foi para menos. O registro solene jornalístico foi substituído pelo “turbilhão de emoções que não para” – sem conter a emoção, chorou: “não aguento mais”, disse perdendo a voz diversas vezes na transmissão.
O que fez a atenção do espectador diversas vezes concentra-se nele, chegando a comover internautas em redes sociais elevando seu nome mais comentados no Twitter.
É uma das características da linguagem tautista: fechada em si mesma, a imagem deve contar com redundância sígnica do emissor, da mesma maneira que o Papa Léguas tinha que sublinhar sua velocidade para as crianças (e, por isso, jamais o Coite o pegaria) fazendo “bip-bip” como buzina de carro.
É como se Galvão Bueno quisesse dizer a todo momento: “vejam como estou emocionado, a tragédia é real!”. Assim como um correspondente ao vivo de Washington tem que se posicionar diante do Capitólio ou da Casa Branca para que o telespectador acredite que de fato o repórter está lá – autismo (a função emotiva supera a referencial) e tautologia (repetição na função emotiva daquilo que poderíamos ver apenas nas imagens).
Resultado: infantilização da transmissão, análoga à linguagem das onomatopeias dos desenhos animados.
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A insistente centralidade no jornalista (como se ele antecedesse o próprio acontecimento) criou duas insólitas situações na cobertura dos eventos de Chapecó.
Na edição do Jornal Nacional do sábado (03/11) a repórter Kiria Meurer (da RBS, afiliada à Globo) parou diante do ônibus que levaria os familiares ao aeroporto onde seriam recebidos os corpos. “Eu consegui um lugarzinho aqui no ônibus, vou acompanhar esses familiares. A partir daqui, a nossa câmera, com o nosso cinegrafista, não pode gravar. Então vou gravando com o meu celular”, disse ela - assista ao vídeo anexo a partir dos 55:30 min.
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