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O chamado “raio gourmetizador” atinge também as festas juninas, como mostra matéria da revista "Veja SP" em seu diligente trabalho semanal de elevar a moral da classe média. A complexa retórica dos “ingredientes” e das “harmonizações” agora constrói a mitologia do “rústico”, do “artesanal” e do “nativo” em quermesses e arraiais. Simples descolados e “coxinhas 2.0” (a versão autossustentável do coxinha tradicional) seriam os arautos de uma suposta simplicidade perdida pelo consumismo desenfreado de uma classe C sem educação. Parece que a “Teoria da Classe Ociosa” elaborada há cerca de 100 anos pelo economista Thorstein Veblen torna-se cada vez mais atual: a afetação sócio-linguística da gourmetização como um “trabalho ocioso” que busca reconstituir uma distinção de classes ameaçada pela política econômica neodesenvolvimentista. Com a midiatização da tendência, hoje a gourmetização assumiria um duplo papel: gourmetizar não apenas a elite, mas também as massas como função disciplinar e ideológica.
Chegamos às festas juninas onde nos quatro cantos do País se comemora os santos populares Santo Antônio, São Pedro e São João. Em seu diligente trabalho de elevação da moral de uma classe média que ainda vê nela alguma relevância, a edição da Veja São Paulo de 10/06/2015 quis nos mostrar que as festas juninas já não são mais as mesmas. Daqui em diante, expressões como “arraial” e “quermesse” se confundirão com balada para jovens aspirantes a uma suposta elite descolada.
Esqueça o quentão, o “buraco quente” (pão francês recheado de carne ao molho) com carne louca, o pinhão e a barraquinha de pesca. Pense agora em uísque, “buraco quente” recheado com carne de costela de boi da raça angus (porque “harmoniza” melhor com cervejas artesanais), pista de dança com DJs e sanduíches feitos diretamente de food trucks com letreiros em handshop.
Esqueça os caipiras. Agora são hipsters. Chega de bilheterias onde trocava-se o dinheiro por fichas para disputar prêmios em barraquinhas. Agora são “ingressos antecipados” vendidos “em lotes”. Tudo isso para a festa junina parecer exclusiva e diferenciada. O melhor dos mundos: a simplicidade popular combinada com sofisticação hip!
Tudo indica que até o final dessa temporada de festas juninas provavelmente veremos algum arraial oferecendo pinhão orgânico, quentão de vinho Bordeaux e milho com sal do Himalaia...
O que vemos nas páginas impagáveis da Veja São Paulo é mais um verdadeiro documento histórico que, no futuro, antropólogos e sociólogos certamente irão se debruçar para redigir suas teses de PhD. Eles descobrirão que esse fenômeno de afetação sócio-linguística chamava-se jocosamente de “raio gourmetizador” e que surgiu dentro de um contexto político brasileiro de polarização e radicalizações morais e ideológicas.
“Menos é mais”
Como vimos em postagem anterior, a cidade de São Paulo deu até aqui a sua melhor contribuição sócio-cultural para o País: a simplicidade descolada, figura urbana que representa a verdadeira evolução do chamado “coxinha” (sobre isso clique aqui). Ele é agora o “coxinha 2.0”: figura autossustentável, preocupado com a agenda eco-planetária e querendo parecer politicamente engajado no contexto dos protestos de rua. Aspira à simplicidade, porque os tempos estão difíceis com a crise planetária (ambiental) e nacional (corrupção do Governo Federal).
“Menos é mais”, é o seu mantra ao mesmo tempos simples (minimalista) e descolado (porque é um hip!). Menos Estado, menos corrupção, menos política (porque é corrupta), e uma sociedade mais justa.
É aqui que a porca torce o rabo. A ideia de sociedade justa que o simples descolado imagina não tem a ver com a igualdade. Aliás a “igualdade” é imaginada como um conceito competitivo (com a igualdade das posições na largada de uma corrida) onde eles largam na frente por terem acesso ao “exclusivo” e “diferenciado”.
O simples descolado aspira à gourmetização geral da vida: da pipoca ao churrasco, do chocolate à agua mineral, tudo passa a ter uma versão gourmet exclusiva. O antigo carrinho de “dogão” prensado ou do x-tudo agora virou um food truck sofisticado. Até o carvão virou gourmet – não faz fumaça e é ecologicamente correto e ideais para “varandas gourmet”, onde as linguiças igualmente gourmet também “harmonizam-se” com cervejas compradas de alguma empresa que adquiriu um kit de fabricação artesanal de cerveja de alguma startup.
Gourmetização é “trabalho ocioso”?
Cem anos depois parece que as ideias Teoria da Classe Ociosa do economista Thorstein Veblen (1857-1929) continuam bem atuais. Para Veblen, devido à sua natureza o homem não se conformaria com o aumento geral da riqueza de uma comunidade que fosse o suficiente para realizar as necessidades de todos. Isso porque as necessidades individuais refletem sempre o desejo de sobrepujar os demais, a fim de ostentar sua honorabilidade.
Diferente da visão da teoria econômica de que o objetivo da produção é a subsistência (satisfação das necessidades físicas e espirituais), para Veblen a base da propriedade é a emulação – trabalho ocioso (tempo gasto em atividade não produtiva) investido em bens que representem distinção, honra, prestígio ou status. Ou em termos mais modernos: “exclusividade” e “diferenciação”.
Quando as classes médias se deram conta que a chamada “classe C” estava ao seu lado no cinema e aeroportos e ao ver videoclipes do funk ostentação estetizando a euforia desses novos consumistas por beber uísque importado e frequentar shopping centers, então procuraram o cinema vip com pipocas gourmetizadas com azeite trufado na cumbuca de cristal.
[caption id="" align="alignright" width="320"] Veblen: a Teoria da Classe Ociosa explica o "raio gourmetizador"?[/caption]
A política neodesenvolvimentista dos anos Lula democratizou o consumo, com a inclusão de novos consumidores capazes de bancar experiências antes impossíveis: compras a créditos de grifes conhecidas, passeios em shoppings ostentando sacolas de compras, cinemas multiplex, corte de carnes nobres e produtos e serviços premium.