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Os animes e mangás japoneses tornam-se cada vez mais populares ao reciclar a cultura pop ocidental com lendas medievais e temas clássicos do Gnosticismo. Um terreno fértil onde cenários futuristas violentos se encontram com Demiurgos, divindades femininas promíscuas e ao mesmo tempo salvadoras e protagonistas em estado de exílio e abandono. Parecem traduzir melhor a natureza humana do que produções ocidentais “místicas” como “Avatar” ou livros de Dan Brown.
Em postagem passada (veja links abaixo) apresentamos a primeira parte de um texto de Miguel Conner sobre o anime “Neon Genesis Evangelion” e a ascensão do Gnosticismo nas animações japonesas. Conner afirmava que assim como o ocidente vem há tempos absorvendo as religiões orientais, o fértil terreno dos animes e mangás japoneses vem demonstrando um interesse por reciclar a cultura pop ocidental com lendas medievais e muitos temas das religiões gnósticas.
Em meio aos mundos distópicos e com batalhas futuristas ultra-violentas, despontam os temas clássicos das narrativas gnósticas: o Demiurgo (divindade enlouquecida e manipuladora), Sophia (ao mesmo tempo divina salvadora e promíscua em corpos cibernéticos, lutando secretamente a favor da humanidade), fagulhas divinas e divindades decaídas no mundo físico, perda da memória e da identidade, universos paralelos, mundos virtuais, protagonistas com sentimentos de exílio e abandono e a iluminação buscada em discos de armazenamento de bancos de dados.
A seguir a tradução da segunda parte do texto de Miguel Conner. Ele é um escritor de ficção científica norte-americano e apresentador do programa "Aeon Byte Gnostic Radio" uma Internet Radio com entrevistas e debates semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop.
Temas Gnósticos nos Animes Japoneses (segunda parte)
Miguel Conner
Miguel Conner
“Ghost in the Shell”: A versão cinematográfica de 1995 dessa anime cyberpunk foi um sucesso comercial nos EUA. Ela abriu as portas animações japonesas cada vez mais ousadas, incluindo sua continuação televisiva “Stand Alone Complex”. Sua influência sobre o filme “Matrix” é quase um consenso; de fato, os criadores de “Ghost inthe Shell”, IG Production, foram convidados para criar um dos episódios de “Animatrix”, uma série de curtas de animação tendo por base o filme “Matrix”.
Philip K. Dick ficaria impressionado com esse mundo alternativo onde o argumento cibernético é o de que o homem é um mero detrito, parte de uma máquina. O filme trata das façanhas de uma famosa ciborgue, Major Mokoto Kusunagi, e a força policial conhecida como Seção 9. Sua tarefa principal é impedir um hacker chamado de Puppet Master. As habilidades desse antagonista são tão avançadas que ele pode reprogramar as habilidades e memórias de qualquer ser humano por meio da tecnologia (em outras palavras, ele realizada tudo o que desejar).
Por meio do "Mirroring Serial Experiments Lain" a trama permeia ambos os mundos – o real e o virtual. O mal supremo é na verdade uma manifestação do mundo virtual. O Puppet Master é uma superlativa inteligência artificial que deseja dominar a dimensão material.
Obviamente, o Demiurgo é representado pelo Puppet Master e o mito da Salvadora/Divina é Mokoto. No entanto, o mito da alma decaída está presente no conceito de “fantasma” presente no filme, uma insinuação da relação entre “centelha divina” e Gnóstica Contemplação com a reencarnação. “Fantasma” é a alma de um indivíduo, ou mais especificamente, a consciência dentro do ateístico cenário de “Ghost in the Shell”.
Mesmo que uma máquina crie um indivíduo – como Mokoto onde seus componentes orgânicos se resumem à cabeça e a coluna vertebral – ele ou ela será considerado um ser humano com todos os direitos e privilégios. Um fantasma (consciência) pode ser transferido para uma outra forma mecânica, desde que haja partes humanas suficientes. Uma pessoa pode ser potencialmente reproduzida em um novo corpo sintético e seu fantasma ser copiado em um banco de dados.
Dessa maneira, “Ghost in the Shell” é um jogo de xadrez entre o Divino feminino e o Demiurgo na luta pela posse da Centelha Divina coletiva, e as peças do tabuleiro são as várias formas sencientes em ambas as realidades. Pelo fato de o Puppet Master esconder os fantasmas das pessoas por meio da manipulação das memórias e identidades, muitas vezes algumas centelhas divinas individuais são como enterradas ou perdidas, como narram muitos dos mitos gnósticos. Mokoto, uma sensual salvadora, é a heroica consciência de que podemos nos igualar ao Demiurgo (o Puppet Master) em confrontos intelectuais e até muito violentos.
“Ghost in the Shell” é certamente inovador por ser o primeiro anime a lidar com questões filosóficas como “o que torna ‘humano’ um ser humano?”, “O que torna consciente uma máquina ou um ser humano?”, “O que é o real?”.
Sua continuação televisiva, “Stand Alone Complex”, introduziu várias cepas de inteligência artificial para incrementar violência associada com especulações filosóficas (e ainda apagar as diferenças entre os mundos real e virtual).
Há ainda muitos outros animes e filmes com biologias gnósticas, embora muitos deles incorporem outros esotéricos órgãos. Aqui estão alguns dos mais baixos Aeons:
Full Metal Achemist
Uma série mais popular e acessível, muito menos gnóstica e com mais hermetismo medieval. Tem lugar em um universo alternativo modelado pela gênese da revolução industrial europeia. Aqui, a alquimia é superiora a qualquer ciência, porém, mais parecida com a magia do que com a química antecessora. Dois irmãos, Edward e Alphonse, tentam ressuscitar sua falecida mãe por meio da alquimia. Tudo dá terrivelmente errado e Edward só consegue salvar o seu irmão unindo a sua alma a uma armadura. Os irmãos tornam-se alquimistas para encontrar a Pedra Filosofal que conceda a Alphonse novamente um corpo. A imagem de uma serpente gnóstica é dominante em todo “Full Metal Alchemist”.
The Big
A série se passa em Paradigm City, a última metrópole sobrevivente de um mundo devastado. Os sobreviventes não apenas perderam a memória do cataclismo, mas são assombrados por nevoentas lembranças, alucinações e vívidos pesadelos. Eles hesital numa quase loucura em um ambiente dominado por um Estado policial. Apesar de futurista, há fortes elementos do “film noir” em “The Big”.
O principal protagonista é um homem conhecido como o Negociador, a única pessoa que inexplicavelmente recupera suas memórias do mundo anterior, antes do “Acontecimento” que dizimou a civilização. Suas memórias e habilidades são revelados ao público na medida em que a série progride na medida em que ele se confronta com as memórias de outros cidadãos. Torna-se evidente para o Negociador que Paradigm City é uma ilusão fabricada na medida em que ele começa a perfurar a realidade por trás da realidade. A série termina com a revelação de que todo o mundo é uma realidade simulada por uma tecnologia sofisticada e senciente.
A batalha final acontece entre as diversas facções de Paradigm City desejosas pelo controle da divina tecnologia. Mas tudo termina quando o mundo é metodicamente apagado e reiniciado. O Negociador é na verdadade uma espécie de clone memético de um Negociador anterior, cuja função primeira era negociar com a tecnologia divina pela sobrevivência. Isso, na prática, faz dele um recorrente salvador gnóstico semelhante ao Neo do filme “Matrix”.
Last Exile
Os ingredientes gnósticos não são imediatamente saboreados. A definição deste anime é a de um mundo com todas as características de uma fantasia steampunk. O planeta é dirigido por uma organização elitista e fascista chamada “The Guild”. Esta obscura organização manipula o curso do conflito entre duas nações em guerra.
Alguns dos patentes elementos gnósticos estão na nave do capitão salvador em formato de uma cruz, uma imperatriz exilada chamada Sophia que possui a chave para a verdade e a paz, e a celebração de uma rebelião da civilização contra a Guild, uma vez que ela realiza seus jogos Svengali. Last Exile também gira em torno do crucial “mistérios sagrados” que traz uma espécie de gnose para os personagens principais. O grego Koine é curiosamente a linguagem dos habitantes. Por fim há o tema das lembranças de um passado, uma idealista existência da Terra, que detêm as respostas para a presente situação humana, trazendo liberdade e individualidade.
A Melancolia de Harushi Suzumiya
Deus se esquece de que é Deus e cai no Kenoma, tomando a forma de uma petulante colegial. Ela possui as características tanto de Sophia quanto do Demiurgo. O marcante episódio da série “Além da Imaginação” vem à mente, sobre uma criança onipotente. No entanto, essa série é mais esotérica e introspectiva.
Sol Bianca
Um grupo de voluptosas piratas espaciais estão em busca do maior tesouro do universo, um lendário objeto conhecido como o G’Nohsis (Gnose). Depois de tempestuosas aventuras , a tripulação do Sol Bianca adquire o G’Nohsis. Descobrem que ele nada mais é do que um antigo disco de armazenamento de informações sobre o paradeiro de um lendário planeta primitivo que foi habitado pela humanidade. Claro, esse planeta é a Terra, há muito esquecida e talvez a casa dos segredos da Iluminação (ou um tesouro real para alguns piratas espaciais).
Éden
É um mundo sem fim. Este evangelho gnóstico é na verdade um mangá (quadrinhos japonenes), mas vale a pena mencionar. A série, atualmente em desenvolvimento, aparece no futuro onde uma pandemia de grandes proporções foi erradicada das populações do mundo. Tal como “Ghost in Shell”, tem um sabor ciberpunk ainda mais industrial. O enredo trata de um campeão chamado Elijah e seus conflitos com a Federação e sindicatos do crime.
Até certo ponto o mangá não revelou ainda quaisquer temas subjacentes gnósticos, mas certamente emprega uma terminologia gnóstica, o que poderia significar temas mais profundos quando os autores decidirem introduzir a inevitável reflexão filosófica.
Um dos personagens principais é Sophia, uma hacker de computadores com um corpo totalmente cibernético. Semelhante à Sophia das mais radicais cepas do Gnosticismo, ela é brutalmente melancólica, promíscua por causa de um sentimento de exílio e propensa a um histérico desespero. Ela falhou em matar seu filho recém-nascido com uma faca, talvez ecos da tentativa de Sophia em destronar a sua própria prole, o próprio Demiurgo, como é descrito em algumas narrativas gnósticas.
A estória inclui Aeons, quase invencíveis soldados robotizados, bem como uma personagem chamada Ennoia (um dos nomes do Divino Feminino no Gnosticismo). As notas de rodapé do quadrinho admitem que ambos serão nomeados como “deuses gnósticos”.
O robo protetor de Elijah chama-se Cherubim, uma referência ao gnóstico conceito de um angélico guardião ou um alto “Self”. O Mito Salvador assume a forma de Maya, uma divina inteligência artificial.
Mesmo que o movimento gnóstico moderno no ocidente perca a força, como historicamente sempre acontece, parece que do fértil solo dos Animes continuarão a brotar evangelhos gnósticos (ocultos e outras escrituras místicas). A popularidade das animações japonesas está crescendo. Seus criadores se apropriaram da árvore ocidental do conhecimento do bem e do mal e apreciaram os frutos da sua comercialização. O início desse artigo [a primeira parte] explica porque os Animes são perfeitos para cristalizarem o Gnosticismo no moderno contexto que agrada às massas. A chave é buscar as pérolas em meio ao enorme material que as fábricas dos Animes produzem a cada ano.
Mas esse é certamente um gênero digno e útil para carregar a tocha da gnose, mesmo com material da cultura pop ocidental reciclado com lendas medievais e temas de pseudo-iluminação; ou para encontrar suas próprias joias de compreensão da natureza humana, deixando para trás pedras sem brilho como “Avatar”, “The Last Airbender”, de Dan Brown ou Philip Pullman, ou alguns reconhecimentos gnósticos em alguns episódios de “Dr. Who ou os romances gráficos de Allan Moore.
Os japoneses podem não ter conquistado o mundo como se temia nos anos 80. Mas eles certamente se enamoraram pelo coração desolado do gnosticismo de tal maneira que faria Philip K. Dick, William Blake, Valentino e Simão, o Mago, desejarem ter pilotado suas próprias unidades Evagelion para combater os monstruosos anjos ao invés de blasfemarem com prosaicas tintas e papéis.
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