É a paráfrase mais batida do mundo, mas não resisto: é a classe média, estúpido!
A nova pesquisa Ipec reforça o que alguns analistas, eu inclusive, vimos alertando há anos. O maior desafio da esquerda, e do PT em particular, é reverter a erosão de seu prestígio junto à classe média, condição fundamental para evitar uma nova grande crise política.
O apoio da classe média pode não ser determinante para ganhar eleições. O PT já venceu diversos pleitos presidenciais apesar de uma forte rejeição entre os estratos de renda média. Mas isso tem um limite. Um apoio maior na classe média evitaria muitas crises vividas pelos governos progressistas nos últimos anos.
Em 2022, a vitória da esquerda só foi possível porque um naco importante da classe média, que havia se unificado num bloco pró-Bolsonaro coeso em 2018, passou a rejeitar ainda mais os valores representados pela extrema direita, e decidiu fazer um voto estratégico em Lula.
Desde meados de 2013 ou 2014, a animosidade na classe média converteu-se no principal problema político do PT, produzindo o lavajatismo, o golpismo e, por fim, o bolsonarismo, forças que representam, a grosso modo, o mesmo fenômeno. São fases diferentes da mesma aberração política, que mescla antipetismo, autoritarismo, e um sentimento cultivado, planejado, de desorientação ideológica.
O ódio da classe média ao PT chegou a tal ponto que, a partir de um certo ponto, ela aderiu ao vale tudo, cedendo às promessas do fascismo, desde que isso implicasse em derrota de seu suposto inimigo.
É uma história velha, na verdade. Em Psicologia das Massas, William Reich conta que o nazismo alemão nasceu em circunstâncias parecidas.
Os estratos populares alemães, especialmente aqueles organizados em sindicatos, emergiram da 1ª Guerra extremamente fortalecidos, em função do fracasso moral, político e militar da alta burguesia germânica, cujo irracionalismo e megalomania haviam conduzido o país a um conflito catastrófico.
As camadas médias alemãs, por sua vez, empobrecidas pela guerra, amedrontadas pela crise econômica, sentiram-se atraídas por um regime autoritário que asseguraria a manutenção de seu status quo. E assim se submetem a Hitler. Seu medo e sua atração por uma saída autoritária foram facilmente manipulados pelas armadilhas retóricas da elite financeira do país.
Voltemos ao Brasil e à pesquisa Ipec.
A aprovação do presidente Lula caiu três pontos de março a abril, de 57% para 54%. Podemos dizer que se trata de uma erosão mais ou menos esperada, natural. Em todo mundo, o presidente mantém um alto índice de aprovação nos três primeiros meses de seu mandato, em virtude de uma espécie de lua de mel entre o eleito e a sociedade. A partir daí, a aprovação sempre cai.
Considerando isso, a aprovação de 54% de Lula ainda é excelente. Poucos presidentes no mundo democrático, onde se pode confiar um pouco mais em pesquisas, detêm índices similares. Como aprovação costuma refletir voto, esses números significariam, por exemplo, que Lula se elegeria em primeiro turno se as eleições fossem hoje.
Quer dizer, isso se acreditássemos em pesquisa, o que não é o caso após todos os erros que elas cometeram em 2022.
Nossa atitude com pesquisas deve permanecer cética. Mas pesquisas ainda são, mal ou bem, uma ferramenta relevante para nossa compreensão da dinâmica complexa da política nacional. Se as utilizarmos equilibradamente, sopesando-as com a nossa própria intuição e bom senso, elas podem ser úteis.
O Ipec entrevistou, face a face, duas mil pessoas entre os dias 1 a 5 de abril deste ano, perguntando o que pensam sobre o presidente Lula.
A queda da aprovação de Lula foi mais acentuada nos estratos superiores de renda. Segundo a pesquisa Ipec, Lula tinha 48% de aprovação, em março, entre os entrevistados com renda familiar superior a cinco salários.
Esse percentual caiu para 42% em abril, seis pontos a menos.
Este segmento representa apenas 9% do eleitorado.
Lula também perdeu apoio em outras faixas de renda, mais representativas.
Por exemplo, entre eleitores com renda familiar de 2 a 5 salários, que representam 26% do eleitorado, a aprovação de Lula caiu de 52% em março para 47% em abril, queda de cinco pontos.
No segmento logo abaixo, de eleitores com renda entre 1 a 2 salários, correspondentes a 29% do eleitorado nacional, a aprovação de Lula também se deteriorou, passando de 58% para 54%.
Entretanto, no segmento mais vulnerável, aquele com renda familiar até 1 salário, Lula cresceu no último mês. Em março, o presidente tinha 66% de prestígio junto a esses eleitores. Hoje tem 69%. Estes brasileiros mais pobres representam 27% do eleitorado brasileiro, ainda segundo o Ipec.
Outro setor em que Lula ainda não conseguiu penetrar, e que aparentemente permanece, em sua maioria, em estado de guerra permanente contra o petista, são os eleitores evangélicos.
Ainda segundo a pesquisa, Lula ainda não conseguiu conquistar o apoio desse segmento. Em abril, 39% dos evangélicos entrevistados pela Folha disseram apoiar a maneira de Lula governar, mas uma maioria de 52% disse que não.
Na pesquisa anterior, realizada entre os dias 2 a 6 de março pelo mesmo instituto, Lula tinha 45% de aprovação, contra 48% de desaprovação. Ou seja, houve uma piora expressiva da avaliação de Lula junto aos evangélicos.
"Se você deixar a democracia fazer a sua mágica, eu tenho a impressão que essas coisas mais ou menos se acomodam."
A frase é do sociólogo Celso Rocha de Barros, que a usou numa resposta a um dos entrevistadores da última edição do Roda Viva.
É uma asserção otimista, naturalmente, e talvez um pouco ingênua. Mas um processo democrático qualquer é um fenômeno tão dinâmico, complexo e misterioso, que falar de mágica pode ser uma síntese apropriada para algumas circunstâncias.
Independente, todavia, desse lado misterioso e "mágico" do processo democrático, é igualmente correto que devemos nos esforçar ao máximo para antever as dificuldades. A erosão do prestígio de Lula na classe média é, possivelmente, um desses alertas aos quais se deve prestar bastante atenção.
Essa erosão ainda está no início, mas é um processo que deveria ser interrompido na raiz. Não há razão racional para que a classe média brasileira tenha medo ou ódio em relação ao PT.
Várias iniciativas do novo governo devem impactar positivamente os estratos médios da sociedade.
Espera-se contudo que toda ação governamental seja formatada e divulgada da maneira correta.
Uma das características marcantes da classe média é a sua sensibilidade e mesmo vulnerabilidade com a informação.
A propósito, se o governo usar a estratégia correta, tanto na comunicação, como na seleção das políticas públicas, para atrair a classe média, isso ajudará muito o campo progressista a montar estratégias eficientes para as eleições municipais de 2024.
A importância relativa da classe média é sua força nas redes sociais. Sua posição minoritária na sociedade se torna hegemonia absoluta quando se analisa o debate na opinião pública. De uns anos para cá, a classe média entendeu o seu poder e passou a agir de maneira muito mais coesa e orgânica do que no passado.
Espera-se que, passados os cem dias, o processo de retomada de programas tradicionais e de obras paradas há quase dez anos, se complete, e que o governo possa iniciar uma nova fase. Há uma grande expectativa de que todos os jovens economistas incorporados pelo governo comecem a apresentar propostas audaciosas e criativas para o desenvolvimento do país.
A melhor maneira de conquistar tanto a classe média quanto os evangélicos será demonstrar que o Brasil pode voltar a sonhar com um futuro de prosperidade, desenvolvimento e justiça social.
A classe média precisa de algum sonho ao qual se agarrar, e que este sonho venha a ocupar seu espaço mental, deslocando para bem longe os espíritos malignos do autoritarismo político, do egoísmo ultraliberal e do negacionismo científico.
Íntegra da pesquisa Ipec.