Elena, o filme e seu contorno

Escrito en BLOGS el
A sinopse do filme Elena, encontrada no Google, é simples: “Elena viaja para Nova York com o mesmo sonho da mãe: ser atriz de cinema. Deixa para trás uma infância passada na clandestinidade dos anos da ditadura militar, e deixa Petra, a irmã de sete anos. Duas décadas mais tarde, Petra também se torna atriz e embarca para Nova York em busca de Elena. Tem apenas pistas: filmes caseiros, recortes de jornal, diários e cartas. A todo momento, Petra espera encontrar Elena caminhando pelas ruas com uma blusa de seda. Pega o trem que Elena pegou, bate na porta de seus amigos, percorre seus caminhos e acaba descobrindo Elena num lugar inesperado. Aos poucos, os traços das duas irmãs se confundem, já não se sabe quem é uma, quem é a outra. A mãe pressente. Petra decifra. Agora que finalmente encontrou Elena, Petra precisa deixá-la partir.” Assisti ao filme, gostei muito, me emocionei. Ainda mais porque conheci Elena, conheço Petra e também a mãe das duas. Mas o que ouvi de outros que assistiram ao filme não foi muito diferente do que aconteceu comigo: “Estou sob impacto, não tenho nem condições de comentar...”. Petra conseguiu transformar uma tragédia que se abateu sobre ela e sua família numa espécie de poema cinematográfico. A música, a narrativa suave, realizada pela própria Petra, os sonhos revelados em vídeos caseiros da pequena Elena ainda criança, a menina representando ou dançando com cara de imensa alegria... Assistam ao filme. Vale a pena. Voltando no tempo Para mim, Elena vai além do cinema, por vários motivos. Um deles tem a ver com o momento político em que ela vai para Nova Iorque. Fernando Collor havia vencido Lula nas eleições e era presidente da República. Seu ministro da Cultura era Ipojuca Pontes, que, de acordo com o projeto global do governo Collor, esvaziava totalmente o Ministério. Apoio zero à produção cultural. Tanto que o Festival de Gramado, que antes era só para filmes brasileiros, teve de se abrir para a América Latina, porque não tínhamos filmes suficientes para concorrer. Elena queria ser atriz de cinema. Talvez, mesmo que tivéssemos produção cinematográfica razoável aqui, ela fosse mesmo para Nova Iorque, porque sonhava alto. Talvez, mas só talvez. E falando em “talvez”, se não tivesse ido para lá, talvez não tivesse vivido as decepções que a levaram à depressão. Claro que durante o filme não pensei em mais nada, fiquei inteiramente preso a ele, com olhos e ouvidos atentos. Mas depois fiquei pensando em algumas coisas não diretamente relacionadas a ele. Aqui entra o como conheci Elena, Petra e Marília, mãe delas. Trabalhei ou colaborei em mais de 30 jornais e mais de 30 revistas, incluindo vários alternativos dos quais gostava muito. Quando alguém me pergunta sobre qual jornal ou revista eu mais gostei de trabalhar, não tenho um só para dizer, mas um que está presente nas minhas preferências é a Gazeta de Pinheiros, que ainda existe como jornal de bairro de São Paulo, mas não tem nada a ver com a Gazeta de Pinheiros em que trabalhei. Quando cheguei a São Paulo, um moleque, em 1963, fui morar numa pensão no bairro de Pinheiros, e lá chegava semanalmente esse jornal, que era gratuito. Era um jornal de bairro mais ou menos como os outros, talvez um pouco melhorzinho. Mas o que tem a Gazeta de Pinheiros com isso? De repente, uma transformação. O jornal cresceu violentamente, em tamanho e qualidade. Muitos bons jornalistas contratados, tratamento das matérias diferente e melhor do que nos jornalões diários, posicionamento político de esquerda... Era outro jornal, com o mesmo nome. O que aconteceu foi que Marília e Flávio Andrade, filhos de um dos sócios da construtora Andrade & Gutierrez, compraram o jornal e resolveram fazer dele um órgão de referência, respeitado e respeitável. Podem estranhar que filhos de um grande empresário fossem de esquerda, mas eram. Marília chegou a viver clandestinamente no Paraná, militando numa organização de esquerda. Flávio, conheci na época da criação do jornal Em Tempo, também de esquerda, e foi seu diretor, quando eu publicava nele matérias em defesa dos presos políticos. E quando a Gazeta já estava com alto conceito, tive a sorte de ser convidado para trabalhar nela. Fui, claro. Para se ter ideia de sua importância, o jornal, que era distribuído de graça nos bairros de Pinheiros, Butantã e Vila Madalena, chegou a ter uma tiragem de mais de 70 mil exemplares, sendo que 10 mil iam para assinantes de fora desses bairros. Costumo dizer que era um jornal lido por petistas, no tempo em que o PT era petista. Virou mesmo uma referência para a esquerda paulistana. Suas matérias de fundo sobre problemas da cidade eram debatidas semanalmente na Câmara Municipal. Acredito que, no futuro, se algum pesquisador se dedicar a esquadrinhar os anais da Câmara no período de 1989 a meados de 1993 vai acreditar que a Gazeta de Pinheiros era o principal jornal de São Paulo. Nas eleições de 1989, a Gazeta de Pinheiros assumiu claramente a posição pró-Lula. Nada de subterfúgios. Nada de fingir imparcialidade, como fazem até hoje jornais que posam de arautos da verdade, mas são extremamente tendenciosos, principalmente em época de eleições. Num debate entre vários candidatos, no primeiro turno das eleições presidenciais, um cara de um grande jornal, que como eu fazia cobertura do debate, chegou a me dizer: “O que vocês fazem não é jornalismo, só fazem matéria a favor do Lula...”. Ele era encarregado de acompanhar Collor e fazer matérias sobre ele. Perguntei: “Você vai votar no Collor?”. Ele se mostrou indignado, dizendo que não, e eu dei o troco: “Você diz que não vota no Collor, mas só escreve matérias tendenciosas a favor dele, e acha que nós, que vamos votar no Lula, deixamos isso claro e fazemos matéria com a nossa visão, é que não fazemos jornalismo de verdade?”. Não obtive resposta. Ainda a Gazeta Nessa época, Collor era chamado de “O caçador de marajás”, pela grande mídia (TV Globo especialmente, mas também revistas e jornais). Faziam diariamente matérias tecendo loas ao governador de Alagoas. Um dia, um dirigente do Sindicato dos Radialistas me telefonou dizendo que ficava indignado com tanta mentira. O governo Collor não perseguia marajá nenhum, e também não era moralizador do funcionalismo como aparecia na grande mídia, que criava um candidato para se opor a Lula ou Brizola, já que um dos dois fatalmente iria para o segundo turno. Eu disse ao colega alagoano que na Gazeta de Pinheiros a gente brincava, às vezes, de pautar os jornais e revistas de São Paulo. A maioria dos editores desses órgãos de comunicação morava na região onde a Gazeta chegava, e na semana seguinte à publicação de alguma matéria inédita criada por nós, eles iam atrás e faziam matérias em cima das nossas. Então, se ele topasse, a gente podia fazer uma matéria desmentindo todo o mito criado em torno do governo Collor em Alagoas; certamente, pelo menos o Estadão e a Folha mandariam repórteres para lá, para apurar alguma coisa. Ele topou e fizemos a matéria (ele mandou o texto básico com as informações e eu editei) que saiu no sábado. Já na segunda-feira o radialista me telefonou alegre, contando que foi procurado por dois repórteres mandados de São Paulo por esses dois jornais. Um deles, José Roberto Alencar, figura decentíssima e competente, levava a Gazeta de Pinheiros debaixo do braço. Bom, para que estou contando isso? É para mostrar que o jornal de Marília e Flávio Andrade era de esquerda e coerente. Sua defesa de posições de esquerda, especialmente do PT, numa época em que ser petista era ser realmente contra o status quo, não era disfarçada nem feita às escondidas. E isso tinha consequências. Chegou a um ponto em que fiquei pensando nos rumos do jornal e propus: “Fico imaginando aquelas velhinhas que recebem o jornal desde quando ele era um típico jornal de bairro e agora o veem com páginas inteiras sobre a Perestroika, a Glasnost, as eleições francesas [que refletiam no mundo todo, porque parecia um embate decisivo entre a esquerda e a direita]. Elas devem nos odiar. Vamos fazer uma matéria com elas?”. Propuseram que eu mesmo fizesse. Falei com os entregadores do jornal, eles me indicaram os leitores mais antigos e fui atrás deles, pedindo que falassem do que achavam da mudança radical da Gazeta de Pinheiros. Esperava que dessem o maior cacete, para eu fazer uma matéria de página inteira. Pois me frustrei. O padrão de respostas foi mais ou menos este: “A gente assiste à televisão e lê revistas falando dessas coisas todas e não entende nada. Aí, pega a Gazeta e ela explica tudo. Agora eu sei o que elas são de verdade”. Uma das consequências imediatas de a Gazeta ter assumido sua posição política foi uma arrasadora fuga dos anunciantes empresariais. Isso começou em 1988, quando o jornal decidiu apoiar Erundina como candidata a prefeita. E perdurou por todo o seu governo, até 1992. Enquanto todos os outros jornais sabotavam a gestão da então prefeita, a Gazeta fazia matérias também críticas, mas defendia seus projetos mais polêmicos e que interessavam ao povo. De novo, a Lurian Mas vamos voltar para as eleições de 1989. Quando Lula começou a crescer e a ameaçar a vitória de Collor no segundo turno, o marketing de Collor trouxe à tona uma ex-namorada de Lula, Mirian Cordeiro, com quem ele teve uma filha. Miriam disse na TV que Lula havia sugerido a ela que abortasse Lurian, porque eles não eram casados. Parecia sem sentido que um cara que queria o aborto da mulher desse à filha o nome Lurian, misto de Lula e Mirian. Mas isso não importava. O assunto foi explorado ao máximo pela mídia tradicional, com ataques moralistas que davam nojo, mas produziam resultado. Se isso traumatizava a menina, não era o que estava em jogo. Estava em jogo impedir que Lula fosse eleito presidente da República. Mas o que isso tem a ver com Elena, que tinha ido para os Estados Unidos, onde teve uma profunda depressão que acabou numa morte trágica em 1990? Tem a ver com o lance seguinte. Marília, deprimida, foi morar em Paris, e ela era amiga de Lula e tinha se apegado muito a Lurian, que tinha mais ou menos a mesma idade de Elena. Marília convida Lurian para ir morar com ela por uns tempos em Paris. Ambas estavam vivendo momentos difíceis. E o retiro poderia ser bom para as duas. Implacável, mesmo depois da vitória de Collor ter sido construída com base nessa farsa, a mídia tradicional brasileira volta a falar de Lurian de forma perversa. O novo escândalo foi a filha do líder metalúrgico de esquerda ir morar em Paris “às custas” da filha de um dos empresários mais ricos do País. Esse era o tom das matérias da mídia “imparcial”. Não interessava saber como, por quê, nem nada. Marília era rica. Ponto. Lurian era filha do Lula. Ponto. Amizade, solidariedade e coisas como essas não valem quando o interesse é atacar um adversário. Elena continuou sendo uma presença constante na vida da Marília e da Petra. Quem é de São Paulo, e mais precisamente da região de Pinheiros, talvez se lembre do Centro Cultural Elenko (KVA), que foi criado para trabalhar com adolescentes e oferecer a eles opções de desenvolvimento artístico. O nome Elenko era uma junção de Elena e Kiko, apelido de um parente delas também morto precocemente. Uma das pessoas que trabalharam lá foi a Lurian. Voltando ao filme... Elena, o filme, penso, parece ser o marco da superação do trauma. Uma catarse, um pôr pra fora as angústias e sentimentos de tristeza. Talvez até a realização de um sonho de Elena: Ela queria ser atriz, não? Pois nesse filme ela foi. Não é preciso conhecer nada dessa história toda que contei para gostar dele, se sentir tocado, se emocionar. São lembranças e ruminações pessoais minhas. Aliás, quanto rodeio eu dei por causa do filme da Petra! Mas para quem não conheceu esse período todo, esta história paralela à formação da jovem Elena, o comportamento da mídia na época (que afinal não mudou tanto, ou melhor, piorou, até porque não temos mais jornais como a velha Gazeta de Pinheiros), acho que vale pensar um pouco nisso. De qualquer forma, assistam ao filme Elena, feito pela Petra, com o apoio da mãe, Marília. É, repito, um poema em forma de filme. Uma forma sensível e bonita de tratar de um drama muito difícil de encarar. Alguém de “fora” contar uma história trágica, é mais fácil. A irmã, não. Petra foi muito competente. Não à toa tem ganhado vários prêmios. E tem mais: numa época em que ninguém põe dinheiro próprio em produções culturais e só usa dinheiro público via Lei Rouanet, a Marília colocou grana no filme. E não só nele, sei de outros apoios dela a trabalhos alheios. Marília talvez seja uma das últimas mecenas do Brasil.  F