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Ao invés de ter um mascote que é apenas uma marca comercial, a Copa do Mundo no Brasil poderia ter pelo menos outras dez opções que diriam muito mais a respeito do nosso folclore e da nossa história
Tenho dó do tatu-bola. O coitado estava e está em extinção, e uma aliança da Fifa e da CBF resolveu “salvá-lo”, tornando-o mascote da Copa de 2014. Mas claro, faturando em cima. Simularam um plebiscito para escolher seu nome entre três palavras feias e imbecis previamente registradas como marca industrial às quais qualquer aventureiro que lançar mão terá que pagar uma grana.
E, segundo foi noticiado, milhões de pessoas votaram (fico pensando: será que há milhões e milhões de babacas dispostos a isso?) e escolheram Fuleco como nome do infeliz. Imagino que se o tatu-bola pudesse falar, diria: “Cacete! Deixem-me extinguir em paz, não mereço um nome desses”.
Com todo o respeito ao tatu-bola e aos outros tatus, essa mascote oficial poderia se chamar “Fuleco, o tatu fuleiro”. Um dos significados da palavra fuleiro é “que não tem valor, medíocre, reles”, segundo o dicionário Houaiss. O tatu-bola tem valor sim, não é fuleiro, mas Fuleco, ora...
Bom, não vou defender aqui o Saci como mascote. Com toda a submissão do Brasil ao imperialismo da Fifa, acho desmoralizante. E como já disse, o Saci tem um nome a zelar.
Antes de voltar ao tema de possíveis mascotes bem brasileiras para uma Copa de futebol realizada no Brasil, fico pensando nessa submissão à Fifa. Ela decide quais serão as sedes, e não os brasileiros. Assim, Belém, por exemplo, que tem já pronto um belo estádio com grande capacidade, e que conta com uma enorme torcida de futebol, ficou de fora.
Em São Paulo, tem um estádio pronto, o Morumbi, mas exigiram a construção de outro, em Itaquera. Sou simpatizante do Corinthians e acho excelente que o clube tenha um belo e excelente estádio, mas não construído por ordem da Fifa. Na Europa, a Fifa aceita qualquer estadiozinho mixuruca, sem chiar, e aqui é toda mandona, exige isso, exige aquilo, diz que o Morumbi precisaria rebaixar o gramado em um metro, e por aí vai.
No Rio de Janeiro, onde o governo tinha gasto uma fortuna imensa de dinheiro público para reformar o Maracanã para os Jogos Panamericanos, a Fifa exigiu outra “reforma”, que não é reforma coisa nenhuma, foi a destruição do estádio histórico para construção de um outro no lugar, de acordo com as exigências descabidas dos cartolas-burocratas-gigolôs do futebol. E lá se vai mais dinheiro público suficiente para resolver um monte de problemas do Rio.
E assim vai... Temos que fazer tudo de acordo como manda a Fifa, com dinheiro brasileiro, mas para lucro do Império, a própria Fifa. Por que ela mesma não custeia a construção do jeito que quer, se o lucro vai ser dela?
Alternativas para o Fuleco fuleiro
Nada contra o tatu-bola. Talvez ele até ganhasse um plebiscito de verdade para a escolha da mascote. Mas a figura dele que aparece nas festividades fifeiras é ridícula, quase tanto quanto o nome que lhe deram.
Nesse processo de escolha, se democrático, poderíamos incluir vários personagens da nossa cultura.
Por exemplo: o Curupira, mito importante, protetor das matas. Com seus pés virados para trás, ele “dribla” caçadores que matam animais por diversão, leva-os para o meio da mata, onde às vezes lhes dá uma surra bem dada. Se já é acostumado a “driblar” caçadores, ele poderia inspirar nossos jogadores para, voltando aos tempos do bom futebol brasileiro, driblar de verdade os adversários, levá-los para seu campo e aplicar-lhes uma surra futebolística, uma lavada, uma penca de gols.
Se há realmente um critério de defesa do meio ambiente para a escolha da mascote, o Curupira é personagem primordial. Mas supondo que fosse escolhido democraticamente, teríamos que, também democraticamente, exigir que seu nome fosse Curupira mesmo, e não uma adaptação comercial como fizeram com o coitado do tatu-bola. Nada de Curupeco, Curubol, qualquer nome comercial fifeiro.
Confundido com o Curupira, tem o Caipora, protetor dos animais da floresta, também um ente mágico chegado a castigar quem mata animais à toa. Montado num cateto, ele guia o bando todo desses animais para longe dos caçadores.
Além de ter esse lado “ambiental”, de proteção de animais, o Caipora tem algumas características interessantes, como a de dar azar a quem o vê. É que, dizem, ele só aparece para gente de mau-caráter. Ah, como ele daria azar a um monte de cartolas nacionais e internacionais.
E mais: os catetos, animais que o acompanham sempre, são como pequenos porcos, mas valentes e perigosos. Seus bandos são temidos até pela onça-pintada, maior predador das Américas. Unidos, os pequenos catetos têm um poder enorme. Assim como homens, onças também sobem em árvores para escapar dos bandos de catetos, quando pressentem a sua vinda. Eles sabem da força da união do bando e andam sempre juntos. Tem até um ditado caipira referente a isso: “Cateto sozinho é comida de onça”. É um incentivo à união dos brasileiros, coisa muito necessária, inclusive para se proteger da cartolagem que esfola o nosso futebol e nosso povo.
Então, ecologia e união fariam parte do cacife desse nosso mito para ser eleito mascote. Fora a já citada capacidade de dar azar aos seus desafetos.
Com o diabo no corpo
Quem procurar a palavra Jurupari em nossos dicionários vai encontrar neles que ele é o “diabo dos índios” ou coisa parecida. Uma grande mentira essa definição, fruto do imperialismo português, que precedeu em alguns séculos o da Fifa.
Jurupari é o grande deus civilizador de um monte de povos indígenas não só do Brasil, mas também do Caribe. Não tem corpo, é só um espírito. Para receber suas orientações, pajés usam maracás – grandes chocalhos em forma de cabeça humana, com buracos simulando olhos, boca, nariz e ouvidos – e soltam fumaça por esses buracos, pois nas cerimônias eles enchem os maracás de ervas e as queimam.
Com o barulho ritmado dos chocalhos e a influência da fumaça, dançando freneticamente, os pajés entram em transe e contatam o Jurupari, que lhes transmite normas civilizatórias. Por exemplo: não bater em criança, não bater em mulher... Os pajés transmitem essas normas aos seus povos, e quem não as cumpre é castigado pelo Jurupari com pesadelos terríveis. O sujeito fica até com medo de dormir. Por causa disso, os padres passaram a dizer que Jurupari é o “senhor dos pesadelos”, o diabo.
Taí um ser digno de nos representar frente à cartolagem, que só faz malfeitos e precisa de um castigo desses. Não tem corpo, mas poderia ser representado por um maracá.
A cobra fuma e Garrincha diverte
Durante a Segunda Guerra, quando o povo brasileiro se manifestava nas ruas, defendendo a entrada na luta contra o nazi-fascismo, os incrédulos diziam que “o Brasil só vai entrar na guerra quando a cobra fumar”. Pois o Brasil entrou na guerra. E a FEB – Força Expedicionária Brasileira – escolheu como símbolo uma cobra fumando.
Penso agora: o Brasil só vai peitar a Fifa quando a cobra fumar. Pois que peite, e ponha uma cobra fumando como mascote da Copa. É outra alternativa.
Bem... Podem achar que não precisamos repetir mascotes, pois temos muitas possibilidades.
Penso então numa ave. Nada de canarinho, pois esse é um símbolo da nossa seleção. Mascote é outra coisa. Que tal a cambaxirra, também conhecida como corruíra? Podem estranhar... Mas outro nome desse passarinho é garrincha, palavra que virou apelido de um dos maiores ídolos do futebol brasileiro, por causa de suas pernas tortas. A palavra cambaxirra, em tupi, significa “peito chilrador”. Chilrar, ou chilrear, é cantar ou falar livre e despreocupadamente. Coisas boas de se fazer, não?
Garrincha tinha um futebol que era como um canto livre, uma maravilha, um futebol-arte em dois sentidos: de artista e de arteiro. Era despreocupado, divertia, e isso é que deveria continuar sendo nosso futebol. Garrincha tinha essa característica, de encarar o esporte como uma diversão, talvez porque era descendente de índios fulniô – seu pai veio desse povo, de Alagoas (existem fulniôs em maior número em Pernambuco), – e índio não vê o lazer, os jogos, as disputas, como um negócio. É alegria. Alegria do povo. Garrincha, a ave, juntando com Garrincha, o homem, seria uma alternativa excelente para mascote.
Boto e guará: magia pura
O boto, apesar de ser um animal da água (e sem pernas) tem suas qualidades também, Aliás, à noite ele vira homem dos mais sedutores, é irresistível, namora quem ele quer e esparrama filhos pelas beiras de rios. Tem algo a ver com a imagem que se faz do brasileiro e das brasileiras, no exterior. Lembrando o velho ditado “futebol é bola na rede”, podemos lembrar que, em relação ao que quer (seduzir mulheres), o boto também não vacila, com ele é “bola na rede” (entendam como quiserem). Vale também.
Já o lobo-guará, outro animal com fama de qualidades mágicas, é outro ser bem brasileiro, diferente de qualquer lobo do hemisfério norte. Para começar, não é exclusivamente carnívoro, come frutas, engole sementes e vai “soltando-as” pelo caminho, junto com as fezes. Essas sementes brotam e se transformam em plantas. Uma delas é uma fruta redonda, grande, conhecida como fruta do lobo, antigamente usada para fazer doces, e em muitos lugares usada pela molecada como bola de futebol. Então, o lobo-guará é um plantador de “bolas de futebol” para crianças pobres, que um dia podem se transformar em atletas.
Além disso, o lobo-guará é um símbolo do Cerrado, o bioma brasileiro que vem sendo castigado com maior violência nos últimos tempos, pela ganância do agronegócio. Destroem o Cerrado com uma rapidez jamais vista. Demoraram uns quatro séculos para arrasar a Mata Atlântica até o estado em que ela se encontra hoje, mas no ritmo de hoje, o Cerrado – com suas dez mil espécies vegetais, grande parte delas de uso medicinal, ainda não pesquisadas – vai deixar de existir.
E mais uma coisa, que é um azar desse animal que de tão feio se torna bonito, com sua magreza e suas caminhadas solitárias: seu olho é considerado um amuleto. Matam o animal para retirar seus olhos e transformá-los em amuletos que, na opinião dos babacas, os tornarão irresistíveis para atrair mulheres.
Eis aí, então, um animal que representaria muito se fosse escolhido mascote, pois estudando seus modos de vida, seus hábitos, certamente se tomaria consciência dos prejuízos que a destruição do Cerrado causará ao Brasil. Maiores que os prejuízos causados pela Fifa.
E tem mais...
Prometi aos editores sugerir dez alternativas para o Fuleco fuleiro. Poderia ser até mais. Mas aí vão os três que faltam.
Um deles é a arara, uma bela ave, defendida por vários grupos para ser mascote. Vale pela beleza, embora não seja exclusivamente brasileira. Posso sugerir como mais “brasileiro”, no caso, seu parente papagaio, personagem de piadas e de gozações. Mas não o Zé Carioca, alternativa imbecil sugerida pelo prefeito do Rio. Para começar, a Copa não é só no Rio, é no Brasil inteiro, e, mais importante que isso, Zé Carioca é fruto da Guerra Fria, quando os gringos, na figura de Walt Disney, resolveram criar um personagem de filmes e quadrinhos que agradasse o que acham ser o “quintal”, deles. E se a gente discorda do Fuleco por causa dos royalties, da exploração financeira da mascote, a coisa aí seria pior ainda: teríamos que pagar royalties também aos gringos da Disney.
Pensando bem, até que o papagaio podia agradar os cartolas brasileiros: ele é um imitador. E a cartolagem vai transformando o futebol brasileiro em uma reles imitação...
Outro animal que tinha seus adeptos como o que representaria bem a brasilidade como mascote é a onça-pintada. Chamada jaguar pelos tupis, é símbolo da valentia, da esperteza na caça, e é cheia de mistérios. Ah, se o futebol brasileiro não usar salto alto... Bom, é também um animal em quase extinção. Respeitável.
Para completar, se a seleção continuar com um jogo teimoso, que não dá certo, com patadas e empacações, o símbolo perfeito não é originário do Brasil, mas é bem adaptado aqui, principalmente nos sertões, onde trabalha, trabalha, e nada ganha, como a maioria do povo brasileiro. É o jegue, como o chamam no Nordeste, mas também conhecido como jerico ou jumento. Bom... Ele representaria bem muitos dos cartolas brasileiros, assim como alguns técnicos e muitos políticos. Além, claro, desse lado bem brasileiro, de ser explorado sem misericórdia.
Esta crônica é parte integrante da edição 119 da Fórum