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A primeira crônica que escrevi para esta coluna foi sobre o geógrafo Aziz Ab’Saber, meu professor na USP nos anos brabos.
Agora, ele ganhou o prêmio “Intelectual do Ano”, da União Brasileira de Escritores, e quero festejar me lembrando de algumas excursões em que ele nos levava para conhecer o Brasil com olhos de geógrafos, não de meros viajantes.
Para concluir o curso de Geografia, tínhamos que ter participado de pelo menos dez excursões de estudos, algumas delas para lugares distantes, num ônibus que não era bem um ônibus, mas uma jardineira pequena, parecida com aquelas que eu viajava no interior de Minas antes de vir para São Paulo, a que demos o apelido de De Martonne, nome de um geógrafo “ultrapassado”, do início do século XX.
Viajei com muitos professores bons, aprendi muito com eles, mas com o Aziz tinha uma coisa a mais: ele, no topo da carreira, diretor do Departamento de Geografia, virava também nosso cozinheiro. Íamos duros, cozinhando em beiras de rios, em viagens que às vezes duravam mais de duas semanas. E quem cozinhava era o Aziz.
O Dito, motorista, obedecia cegamente o professor, e isso era um perigo. Se o mandassem entrar numa rua contramão, ele entrava. Uma vez, um grupo foi estudar o cerrado do norte de Goiás e parou em Brasília, para uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em que o Aziz daria uma palestra. Todo mundo – menos o motorista, o professor dizia que a vida de todos nós dependia dele não passar mal – comeu no restaurante universitário da UnB. A comida de lá tinha fama de ser ruim, mas era pior do que a fama.
Foi uma fila de gente com dor de barriga a noite inteira, na porta do único banheiro de um hotelzinho de Taguatinga.
De manhã, todos entraram alegres no De Martone, e a excursão continuou animada. Mas, aos poucos, foi-se fazendo um silêncio... E por fim o professor Aziz falou com o motorista:
– Dito, vai diminuindo a velocidade aos poucos...
Ele tinha que falar assim, pois se mandasse o Dito parar ele meteria o pé no freio, e quem ia segurar os intestinos da turma com uma brecada assim?
– E quando estiver bem devagar, encoste no acostamento e pare.
O Dito fez isso, desceu todo mundo em silêncio, o professor gritou: “Mulher pra lá, homem pra cá” e todos correram para trás das moitas.
Isso se repetiu várias vezes. Quando a excursão chegou de volta, perguntei ao Mané Bonilha como tinha sido a viagem e ele respondeu: “Adubamos Goiás inteiro!”
Uma vez, fomos a Mato Grosso, estudar os diferentes tipos de cerrado e o arenito das barrancas do rio Paraná. Duros, dormíamos dentro do De Martonne. O professor e algumas meninas dormiam em hotéis. Na volta, paramos no final da tarde perto de Presidente Prudente e jantamos um arroz carreteiro feito pelo Aziz. Chegamos à cidade, o Dito deixou uma turma num hotel e nos levou a uma praça mal iluminada, que era melhor pra gente dormir dentro da jardineira.
O problema é que a digestão do arroz carreteiro foi rápida, e lá pelas dez da noite estávamos com fome. Tínhamos usado o dinheiro que restava para comprar dois litros de cachaça. E por isso a fome era maior ainda.
Vimos do outro lado da praça uma baita festa numa casa. Era um casamento, com música animada, muita cerveja, peru, frango assado e salgados.
Decidimos ir lá. Combinamos: o Ricardinho e a Suemi, que dançam muito bem, iam na frente, dançando, e nós atrás. Se o pessoal não se incomodasse, a gente ficava lá. Se mandassem a gente embora, roubávamos um peru ou um frango assado e sairíamos correndo.
O pessoal da festa era hospitaleiro e alegre. Todo mundo parou pra ver o casal dançar. Fizeram até roda. Mas o Ricardinho tinha bebido mais que nós e não entendeu bem o que combinamos. Levou a Suemi dançando até uma mesa, pegou um peru e saiu correndo.
Claro que tivemos que sair, sem graça. Fomos pra perto do De Martone e comemos o peru xingando o Ricardinho: “Se você não tivesse roubado o peru, estaríamos lá, comendo de tudo com cerveja”.
Esta crônica é parte integrante da Fórum 102.