Rodrigo Rodrigues me enviou este vídeo com o seguinte comentário:
"Quando a polícia é tratada com o mesmo tratamento que reserva aos cidadãos."
O julgamento ocorreu em 2012, no Fórum de São João del-Rei, Minas Gerais, o defensor é Ércio Quaresma, a testemunha em questão é o capitão Edinilson Correia da Costa, o promotor é Lauro Sodré, a juíza, o réu é Fernando Henrique dos Anjos, acusado de estupro, morte e ocultação do corpo de Amanda Glívia Vale, uma jovem de 19 anos. O crime, ocorrido em Lagoa Dourada, MG, em 2009, chocou os moradores da cidade por causa da crueldade do réu. Apesar dos argumentos da defensoria de que havia muitas incongruências no processo, o réu foi condenado a 27 anos e seis meses de prisão.
Voltemos à polêmica do vídeo nas redes sociais, dois anos após o julgamento.
Quaresma foi desqualificado nas redes e o oficial da Polícia Militar foi enaltecido. Muitos internautas compactuam com o comportamento ilegal do capitão e detratam Quaresma não por ele ter exigido que uma testemunha agisse como tal, mas porque o defensor foi, em 2010, o advogado de defesa do goleiro Bruno, acusado da matar e esquartejar o corpo de Elisa Samúdio e no referido julgamento o defensor de Fernando Henrique dos Anjos.
Mas primeiro vejamos o vídeo do julgamento em questão, para depois analisar o comportamento dos sujeitos envolvidos.
Não conheço Quaresma, não sei se ele de fato é dependente de crack . O que desejo discutir aqui é a inadequação do comportamento de um oficial militar em um julgamento.
Para mim o vídeo é didático sobre como a PM do Brasil, entulho da ditadura militar, não tem ideia do que seja respeito às leis ou direito à Segurança Pública.
O vídeo choca, estarrece. Mostra porque no Brasil a juventude negra é exterminada, porque dependentes químicos são tratados na maioria dos casos como restos humanos, porque os pobres nas favelas e periferias brasileiras têm mais medo da polícia do que dos bandidos.
O capitão que sequer é réu, trata o advogado de defesa - um defensor público - e a juíza como se às leis brasileiras não lhe dissessem respeito, como se pairasse acima delas, como se ele fosse um monarca absolutista.
O defensor diz:
"O senhor é capitão lá fora, aqui o senhor é testemunha, aqui quem faz as perguntas sou eu. Então o senhor faça a gentileza de observar aquilo que a lei manda. Se o senhor não sabe cumpri-la lá fora, aqui dentro o senhor vai cumpri-la"
O capitão ergue seu dedo em riste para o defensor, levanta-se do banco de testemunhas e o ameaça. Quaresma reage:
"O que é isso? Aqui você é testemunha, não venha me intimidar não!
O capitão mais uma vez desacata o defensor:
"Não tenho medo de você não, rapaz."
O promotor público se submete ao poder militar, esquece do seu papel no tribunal e é preciso ser alertado pelo defensor sobre como funciona uma corte de Justiça. A juíza precisa intervir e ordenar ao promotor que respeite o juri. O promotor, mais uma vez, desrespeita o juri ao se submeter ao poder absoluto do capitão, buscando jogar a responsabilidade de desacato ao defensor, usando, inclusive, de um linguajar não usual ao tribunal:
"O cara (referindo-se ao defensor) desrespeita o capitão..."
De acordo com este promotor, exigir do capitão que se comporte como as testemunhas devem se comportar em um tribunal, é um 'desrespeito'. O capitão, sentindo-se ainda mais imputável, cheio de si, levanta-se. A juíza perde a paciência e lhe informa com todas as letras quem é que tem o poder assegurado pela Constituição naquele local. Diante da cena, ficamos esperando o momento em que a juíza vai gritar para o capitão desrespeitoso, algo como: -- Embora o senhor pense que ainda vivemos no período da ditadura militar, não vivemos mais sob o seu jugo, aqui o senhor terá de respeitar a lei.
Num país onde a polícia militar não respeita a Constituição, não é obrigada a respeitar as mesmas leis que um civil sequer numa corte de Justiça, os cidadãos jamais terão direito à Segurança Pública.
Um dado momento depois deste show de desrepeito ao tribunal protagonizado por um promotor público e um oficial militar, o promotor diz:
"Isso vai mostrar para a sociedade como a polícia age aqui dentro (no tribunal), imagine lá fora."
Quando a juíza, o promotor e o defensor público saem por alguns momentos, o capitão diz:
- Vai fumar crack, o vagabundo" Aqui não tem crackeiro não, seu filho da puta!
Ele fala isso para um defensor público! Levanta-se e se dirige ao juri como se estivesse em sua rotina nas periferias do país. Como se estivesse diante de recrutas para quem as forças armadas oferecem humilhações sem fim em sua retórica de disciplina, onde a hierarquia justifica toda sorte de abusos aos que estão abaixo dela. É um verdadeiro show de horror. E para coroar o espetáculo da barbárie, ele ameça que vai dar um tiro na cara do advogado de defesa.
Num tribunal de Justiça um capitão da polícia militar chama um defensor público de 'crackeiro', vagabundo', filho da puta e diz:
"Vou levar ele pra vala" e ri.
Diante desta demonstração de barbárie e de completa sensação de impunidade deste capitão, meu amigo Rodrigo, ao afirmar o que transcrevi no início deste post, me parece errar em sua análise. Pois, se um cidadão tivesse a ousadia de praticar um décimo do desrespeito que esse capitão teve a petulância de fazer num tribunal, não estaria vivo pra contar a história.
Pena que os cidadãos brasileiros não tenha uma juíza presente em todas as favelas brasileiras pra dizer com dedo em riste na cara dos capitães, sargentos, cabos, soldados rasos, atrevidos, desrespeitosos das leis e convencidos da impunidade dos atos que praticam:
_ Presta bem atenção, o senhor também! Tem uma juíza na sua frente e eu estou cassando a palavra do senhor! E a mim o senhor respeita! Contenha-se! Voz de prisão por voz de prisão, eu dou pro senhor também.