Quem é dono dos pobres, afinal?
Por: Wagner Iglecias, Especial para o Maria Frô
16/01/2013 MorumbiXParaisópolis.
Esse fenômeno dos rolezinhos, já exaustivamente discutido por n atores diferentes (sociólogos, antropólogos, politólogos, juristas, jornalistas, blogueiros, e tantas outras pessoas) tem uma dimensão ainda pouco discutida, mas muito interessante: afinal, essa molecada da periferia que está fazendo esses movimento, é propriedade de quem? Porque para além das inúmeras tentativas de explicar o fenômeno, está em curso uma guerra surda para dar a palavra final sobre ele, uma guerra para ver qual narrativa sobre os fatos é a mais legítima, como se isso fosse possível. Como qualquer estudante de 1º ano de graduação em Ciências Sociais sabe, sempre é importante entender quem profere um discurso e qual lugar esse indivíduo ocupa na estrutura social. Ou então não se entende nada.
Pois bem. O artigo “Aparthaid a brasileira?”, que escrevi no sábado em parceria com o Prof. Rafael Alcadipani, da FGV, poucas horas após a liminar que proibiu o rolezinho no shopping JK Iguatemi, foi publicado no Jornal GGN domingo cedo e compartilhado em vários outros sites e blogs nas horas e dias seguintes. Foi muito interessante percorrê-los e ler os comentários. Muitos, mas muitos mesmo, não entraram no mérito dos vários pontos de discussão que propusemos no texto. Antes disso, buscaram nos desqualificar como supostos teóricos que passam seus dias isolados dentro dos muros acadêmicos e nada sabem da realidade. Oras, se essa visão foi ou segue sendo alimentada por alguns acadêmicos isso não pode ser extrapolado para todos, correto? Vários comentários nos questionaram sobre o que faríamos se os rolezinhos fossem feitos dentro de nossas respectivas faculdades ou em frente às nossas casas. Argumento a meu ver no mesmo nível daquele “defende direitos humanos? Então leva o bandido pra sua casa” ou ainda “denuncia as mazelas do capitalismo? Então compra uma passagem para Cuba só de ida”. No entanto, não vou ficar aqui de mimimi denunciando um suposto preconceito contra intelectuais.
Que os conservadores enxerguem rolezinhos ou manifestações de rua como coisa de vândalos, vagabundos, arruaceiros ou gente sem educação etc não surpreende, pois este sempre foi o nível de argumentação destes setores. Que juristas preocupem-se com o estrito cumprimento da lei, ou que parte da imprensa chame a atenção para a questão da importância da preservação do patrimônio público e privado, também já é esperado. Que acadêmicos, sobretudo sociólogos, enxerguem nestes fenômenos indícios de transformações sociais muito mais profundas, longas e complexas, também não é novidade. Aliás, reconheço que muitas vezes nossa argumentação de sociólogos é consirderada, para usar um termo acadêmico, chata pra cacete por parte de quem não é da área. Mas como diria aquele grande filósofo contemporâneo Kleber Bam Bam, “faz parte”.
Agora, diante disso tudo, o mais curioso é a narrativa que vem daqueles que não se situam em nenhum destes lugares, e chamam para si a legitimidade de quem nasceu e viveu na periferia. Seriam os periferiólogos? Não tenho dúvida alguma de que passar a infância numa favela deve trazer ao indivíduo muito mais conhecimento sobre aquela realidade do que alguém de fora daquele universo que o visita duas ou três vezes na vida para fazer uma etnografia acadêmica ou uma matéria jornalística. No entanto, acho eu, nem mesmo o morador da periferia consegue vencer a disputa de narrativas sobre um fenômeno como o rolezinho. Nos últimos dias vários amigos me encaminharam ou postaram o artigo de Leandro Beguoci, chamado “Rolezinho e a desumanização dos pobres”. É um artigo excelente, que mistura a experiência de quem nasceu e cresceu num bairro muito pobre com alguém que estudou Ciências Sociais. Vale muito a leitura. No entanto a abordagem de Leandro parece não escapar da tentativa que mencionei acima, de dar a última palavra, a explicação definitiva, a narrativa mais legítima.
Leandro desqualifica o termo aparthaid e diz que o mesmo é usado por blogueiros de esquerda “a partir de certezas baseada em quase nada”. Critica o nível dos debates que têm sido feitos até aqui sobre os rolezinhos e diz que eles poderão ser responsáveis por mais um ciclo de humilhação dos pobres e até mesmo pela sua desumanização!!! Fala sério. Ao ler isso lembrei de uma festa que fui, certa vez, num sábado a tarde, numa residência localizada num dos bairros mais caros de SP. Pra conseguir parar meu carro na rua já foi um sacrifício, tamanha a quantidade de SUVs e outros carrões enormes estacionados nas proximidades. Na casa só gente branca, muito bem vestida, comendo e bebendo do bom e do melhor. Homens trajando suas famosas camisas pólo (vocês sabem a marca) e conversando sobre assuntos como tênis e automobilismo; mulheres com seus cabelos longos lisíssimos papeando em animadas rodinhas; crianças de pele e olhos claros brincando pra lá e pra cá. De repente entraram no ambiente quatro rapazes negros. Acomodaram-se em quatro banquinhos, tocaram pagode por exatas duas horas, despediram-se e foram embora. Não fossem músicos provavelmente jamais estariam ali. E esse é apenas um exemplo. Muitos outros poderiam ser dados.
Não precisa ser acadêmico, ou favelado, para já ter visto ou vivido situações semelhantes a esta. Não precisa ser um grande observador da realidade social brasileira para saber que há shoppings e shoppings, uns de ricos e outros para os pobres. Obviamente ninguém é ingênuo a ponto de imaginar que nosso aparthaid está escrito em normas jurídicas, como ocorreu na África do Sul durante décadas. Mas aqui ele é invisível e cotidiano, inscrito no dia a dia das relações sociais, há séculos. Extremados não são “blogueiros de esquerda” ou acadêmicos que apontam isso. Extremada é a segregação racial brasileira. Ao menos os pobres, pra sua própria sorte, não têm dono.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.
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