A primeira dor de amor diante da multidão estúpida!
João Pedro tem seis anos. É um menino articulado, sabe tudo sobre pítons e dinossauros. Adora desenhar e é muito bom nisso. Recentemente ele se interessou pela escrita.
Gosto de conversar com ele e já tive vários bons papos. Gosto de ouvir e apreender o mundo de sua perspectiva. Geralmente nos encontramos na hora do almoço quando ele volta da escola com a sua irmãzinha Sofia. E enquanto todos nós saboreamos o cardápio preparado pela Mel, sua mãe e eu vamos ouvindo suas histórias e as de Sofia.
João Pedro gosta da Carol, sua colega de classe. Seu sonho é que os pais de Carol aceitem o convite dos seus para que sua amiga vá passear na praia e brincar com ele nas férias.
Na noite anterior ele escolheu uma flor bem bonita do vaso de sua mãe. Uma gérbera. Interessante a escolha da gérbera, flor que cresce na América do Sul, África, incluindo Madagascar e na parte tropical da Ásia. Para quem não a conhece, a gérbera é parecida na textura e formato com uma margarida, só que bem maior. Aliás, a gérbera é da mesma família das margaridas, não é por outro motivo que a primeira espécie registrada em 1889 no Curtis Botanical Magazine por Joseph Dalton Hooker, naturalista inglês e amigo de Darwin, é conhecida pormargarida-do-transvaal.
A gérbera que João escolheu era de uma cor rosa bem vivo, próxima ao lilás. A escolhida para recebê-la, claro, era a Carol. Uma flor do nosso continente para o primeiro amor é sempre um bom começo. Mas é uma tarefa e tanto esta, mesmo para o menino que sabe desenhar minotauros.
Na hora do almoço João chegou transtornado. Quando ele está chateado o primeiro termômetro são suas bochechas. Elas ficam bem vermelhas, seu rosto ganha uma risada nervosa e ele muda a voz, fala mais grosso, com os dentes cerrados.
O coração de sua mãe, como de toda mãe, já havia adivinhado, por algum motivo, a escolhida havia rejeitado a flor do seu filho amado.
João mal conseguia falar, seu corpo estava inteiro rijo e, embora, necessitasse tanto de um abraço, era impossível recebê-lo. Não havia consolo para aquela dor, ele só queria de alguma forma expulsá-la de seu peito juntamente com a vergonha da rejeição pública. Repetia quase num mantra reverso, mal abrindo a boca, com uma voz cavernosa e nervosa: ‘ela não aceitou, eu mandei os homens jogarem a flor no lixo’.
Em uma micro-catarse João pegou um papel do escritório da mãe e escreveu com toda a raiva: ‘Carol eu te odeio, sua idiota, sua burra!’ Amassou o papel, jogou ao chão e saiu batendo o pé, a porta e tudo mais que encontrou pela frente.
Ficamos ali sentadas eu sua mãe sem termos muito o que falar. A dor de João era legítima e de alguma forma ele precisa purgá-la para voltar a respirar novamente.
Sofia sem se abalar e para quebrar o silêncio instaurado conta-nos a novidade: o Vitor Fai aceitou a gérbera que ela havia lhe dado. Sofia e se o Vitor não quisesse a flor? Quisemos saber e ela sem delongas: ‘ele ficaria sem a flor, ora!’
Sofia é o projeto da mulher do século XXI, aos três anos estava preparada para o não. Vitor talvez seja o homem do século XXI e saiba que é bom receber flores.
Mais tarde telefono para Carla, quero saber do João. Ela me conta mais detalhes da história da primeira dor de amor de seu filho.
Todo o problema residiu na manifestação da ‘multidão estúpida’. João estava um pouco envergonhado para dar diretamente a flor à Carol, pediu ajuda ao amigo descolado, Caetano, que como só os pragmáticos são capazes, sem rodeios, deu um berro na sala: ‘Carol, o João quer te dar uma flor’. Carol surpreendida com a atenção de todos voltada para ela, ficou em silêncio e outra amiga respondeu por ela: ‘Carol não quer flor nenhuma’.
As dores de amor das crianças têm o tempo de alguns pares de horas. À noite, mais calmo e com a ajuda do pai experiente, João resolveu a questão. Sentou-se à mesa do escritório, pegou um lindo papel de carta e redigiu algo bem diferente do bilhete rasgado da hora do almoço:
“ Carolina,
Você me deixou sem graça no meio da multidão estúpida! (grifado com marca texto amarelo para não deixar dúvidas).
Fiquei muito chateado que você não pegou a flor que eu te dei.
Mesmo assim você ainda é minha amiga.
Um abraço, boas férias.
Assinado: João Pedro.”
Para não correr riscos de a carta também virar foco da ‘multidão estúpida’ João combinou com o pai que a missiva será postada apenas na semana que vem (todos já estarão de férias escolares). Seguirá pelo correio como convêm às cartas desta importância.