Rosivaldo Toscano: Paulo Sérgio: "É a vítima em potencial para o espetáculo mórbido"

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Quem é o Palhaço desse Circo Midiático?

Rosivaldo Toscano, em seu blog

23/05/2012

Está lá o rapaz. Algemado, suado, humilhado. Dá para ver, no seu linguajar, no seu vocabulário repleto de ausências e de incompreensões, sua rudeza. Tipo mestiço, bem ao estilo lombrosiano do nosso sistema penal. Dirão muitos: “é culpado só por existir daquele jeito”. É a vítima em potencial para o espetáculo mórbido. Não seria um ser humano ali. Seria uma coisa a ser explorada, consumida, execrada, usada.

Ao seu lado, a voz da moral rasteira. A bela inquisidora, de nariz empinado e bem vestida, se aproveita: zomba, humilha, abusa de um ser humano em estado de fragilidade e desassistido pelo Estado, apesar de se encontrar no interior de um estabelecimento público. Arrogância. Ele nem sabe dos seus direitos. Ela sabe que ele os tem. E ela sabe que, ela própria, tem seus deveres. Ela sabe o que faz. Mas o faz, assim mesmo.

A inquisidora sorri com aqueles dentes brancos que escondem sua escuridão interior. Para ela, aquele rapaz não é nada. É um objeto, um instrumento de escárnio, covardia e audiência televisiva. Números. Números. A imagem é tudo. A inquisidora projeta naquele jovem humilhado todos os defeitos que possui e que, pelo seu comportamento, não são poucos. Estupra-o perante a família, os vizinhos, a sociedade. Para ela, quinze minutos de infâmia. Para ele, o estigma por toda a vida. Inocência? Não há espaço no espetáculo-julgamento-sumário para se discutir isso. Perde a graça da piada.

Quem sabe ela pense que ainda será premiada em futuro breve com um cargo eletivo, pelos (des)serviços prestados. Já perceberam que muitos desses inquisidores da moral rasteira terminam eleitos? Sintomático e revelador da qualidade de nossa classe política e de quanto ainda precisamos amadurecer nossa jovem democracia...

E o mais paradoxal e sintomático é que o fato vem à tona no mesmo dia em que uma CPI traz a tentativa de inquirição de um suposto bicheiro, defendido por um dos mais famosos (e, com certeza, bem pagos) advogados do Brasil, que chega ao local sem algemas, e metido dentro de um (certamente caro) alinhado terno. Na hora de responder às perguntas, educadamente feitas, por sinal, exerce seu direito constitucional de ficar calado.

Esses programas desumanos e sangrentos, que pretensiosamente se intitulam jornalísticos (para mim, melhor seria criminosos), são reveladores de quão violenta e desigual é a nossa sociedade. Praticam injúria real, para dizer o mínimo. Esse caso de pseudojornalismo é usual, banalizado, aliás. Uma clara (e comum) violação a direitos constitucionais da parcela já mais sofrida da população. Vê-se o contraste. Preto no branco. Sombra e luz. É cru. É cruel.

Mas a inquisidora não agiu sozinha. Houve comparsas nessa palhaçada midiática com os direitos fundamentais. Uma verdadeira aula de insensibilidade e de como ser abusador, autoritário e criminoso com o outro. Há crianças que assistem a isso. Não educa. Não edifica. Não informa. Deforma. E não há liberdade de deformação.

A filmagem foi realizada dentro de um estabelecimento carcerário, à vista dos agentes públicos responsáveis pelo preso e que assistiram à execração pública, sem falar das vozes que auxiliaram e deram dicas à inquisidora. Não quero, aqui, julgar o mérito: se estuprou, matou, seja lá o que tiver feito (ou não). Não se trata disso, até porque para investigar, processar e punir, em um Estado de Direito, há um prévio inquérito policial e o processo penal com ampla defesa e obediência ao devido processo legal. E há penas previstas. Nenhuma delas permite o apedrejamento real ou midiático, e, muito menos, prévio a qualquer apuração. A Constituição exige, ainda, que se obedeça às regras do jogo democrático, e que se garanta a dignidade da pessoa humana e a humanização da prisão e das penas. Não há como fugir disso. Senão, é barbárie.

A Lei das Execuções Penais se aplica ao preso provisório por força do seu artigo 42. E é clara ao dispor, no artigo 40, que todas as autoridades públicas devem protegê-lo de qualquer forma de sensacionalismo e garantir a ele o respeito à integridade física e moral. Senão, é abuso de autoridade, para dizer o mínimo.

Ao contrário do que a inquisidora midiática pretendia, esse vídeo não deveria ir somente parar no Youtube. Deveria, sim, ir para as salas de aula das faculdades de direito e de jornalismo, e para os cursos de formação e de capacitação contínua de profissionais da área de segurança pública. Um exemplo de como não ser exemplo. Uma espécie de don’t-know-how.

Ao invés de instantes de risos e escárnios, um minuto de silêncio. E outros tantos de reflexão. Para que haja um futuro de novas práticas jornalísticas e de outras posturas das autoridades que cuidam do encarceramento humano.

A inquisidora da mídia rasteira imaginou aquele jovem como o palhaço do número. Mas ele, naquele circo midiático todo, foi apenas o figurante. O Estado de Direito foi feito de palhaço.

*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito no RN e membro da Associação Juízes para a Democracia.

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