Antonio Luiz Costa: Celso Amorim, a história na mão

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A História na Mão:

Por Antonio Luiz M. C. Costa, Carta Capital n? 663

10/09/2011

Celso Amorim relata momentos decisivos da diplomacia brasileira no governo Lula. Foto: Walter Campanato/ABR

A obra merece atenção, no mínimo, por expor algo do pensamento de alguém que o especialista em relações internacionais Daniel Rothkopf classificou na Foreign Policy de outubro de 2009 como o “melhor chanceler do mundo”, continua influente nas relações exteriores brasileiras, é o atual ministro da Defesa e, provavelmente, virá a cumprir outros papéis intelectual e politicamente importantes. Mas, principalmente como testemunho em primeiríssima mão da estratégia e dos bastidores do Itamaraty em uma época decisiva para o Brasil e o mundo, na qual os países do Sul começaram a descobrir e usar sua força.

Em Conversas com Jovens Diplomatas (editora Benvirá, 616 págs., R$ 64,90) Celso Amorim reúne 20 palestras a alunos do Instituto Rio Branco, de 2005 a 2010. Naturalmente, não poderia haver nelas nada de confidencial, mesmo na época em que foram proferidas, mas o quadro que delas emerge pode surpreender até quem acompanhou o processo.

O divisor de águas, ao qual Amorim frequentemente retorna em suas explicações – mas cuja importância esteve longe de ser óbvia na época – foi a Declaração de Brasília de 6 de junho de 2003, na qual foi criado o Fórum do Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas). Em torno desse eixo, com apoio da China, articulou-se o G-20 que bloqueou as pretensões norte-americanas e europeias de concluir a seu gosto a Rodada de Doha das negociações da OMC na conferência de Cancun de setembro de 2003. Até então, as negociações eram polarizadas entre os EUA e a Europa, com os países periféricos colocando-se ao lado do primeiro (latino-americanos e países do sudeste Asiático, interessados na abertura dos mercados agrícolas) ou da segunda (africanos e Índia, mais protecionistas). A partir daí, passaram a ser triangulares.

Pouco depois, desmanchou-se no ar a Alca, projeto dos EUA que parecia sólido e inevitável. Seguiram-se iniciativas impensáveis no governo anterior: a articulação da União Sul-Americana (Unasul), a formalização do grupo BRICs e a ação diplomática independente do Brasil em Honduras e no Oriente Médio, ao mesmo tempo que o comércio exterior brasileiro, antes focado no Norte, passou a se dirigir cada vez mais a países do Sul, notadamente África, América do Sul e China.

Além da importância dessa virada, outro motivo condutor é o que se expressa no título do terceiro capítulo “o perigo de ficarmos só voltados para o ideal é a irrelevância. O de estarmos totalmente voltados para o realismo é a inação”. Há diferentes formulações e aplicações dessa tese, mas está presente o tempo todo. O “ideal”, nesse contexto, é o ponto de vista da utopia, o voluntarismo de quem exige uma política externa incondicionalmente moldada por valores revolucionários ou humanistas, sem levar em conta o estado do mundo. O “realismo”é a aceitação igualmente incondicional da realidade tal como se apresenta, o pragmatismo cínico que vê nos diplomatas meros representantes comerciais dos produtos brasileiros.

Amorim vê sua estratégia como uma permanente busca de equilíbrio entre a análise da realidade e o desejo político de realizar. Mesmo que sua política tenha parecido “utopia”, do ponto de vista de editorialistas e colunistas que desde os anos 90 menosprezam as relações com o Sul, pontificam que a prioridade do Brasil deveria ser aprender a se comportar como província do Império e montar um lobby em Washington para melhor competir com os argentinos ou mexicanos e veem nos diplomatas nada mais que representantes comerciais dos produtos brasileiros.

Esse equilíbrio passa quase sempre, na visão do ex-chanceler, pela criação e fortalecimento das instituições internacionais. É nesses termos que se explica a contínua dedicação à OMC e ao Conselho de Segurança da ONU, apesar dos poucos resultados, tanto quanto ao Mercosul e Unasul, mais bem-sucedidos. E igual defesa da existência da OEA como fórum entre América Latina, Estados Unidos e Canadá, apesar da crescente autonomia das articulações latino-americanas – e de Lula, depois da V Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago, de 2009, ter dito que “a próxima incluirá Cuba ou não existirá”.

Para Amorim, a consolidação de regras e organizações é a única forma de defender os interesses dos fracos ante os mais fortes. Sem entidades como a OMC, a ONU ou a OEA, nada impediria as potências de impor sua vontade diretamente aos países menores, nem esses teriam a quem recorrer contra seus abusos. Desde que as regras de fato tenham algo a oferecer aos mais fracos, é claro: foi ele mesmo quem impôs à Rodada de Doha da OMC e à Alca condições e exigências que os países ricos não aceitaram. No primeiro caso, aparentemente Amorim lamenta, pois acredita que ao ser suspensa em 2008, ao fim do mandato de Bush júnior, a negociação chegava a um acordo aceitável e benéfico para o Brasil e para a maioria dos países do G-20.

Já no caso da Alca, a história é outra. A Amorim chegou a parecer impossível não tê-la e ser preciso buscar o melhor acordo possível dentro desse projeto: o Itamaraty estava quase sozinho, tanto no cenário político interno quanto no Mercosul. Tentou ganhar tempo e “desentortá-la”, como diz, mas parece ter ficado mais satisfeito com seu abandono aparentemente definitivo. Segundo ele, o principal objetivo dos setores que a defendiam nunca foi abrir mercados dos EUA a tais ou quais produtos brasileiros, mas sim “travar” (lock in), petrificar, tornar irreversíveis pelos compromissos externos a abertura do mercado e as reformas neoliberais, de forma muito mais extrema que a exigida pela OMC: ausência de política industrial, privilégios ao investimento estrangeiro e aceitação das normas estadunidenses de propriedade intelectual.

Esse misto de pragmatismo, legalismo e vontade política foi proveitoso. Hoje estaria fora de lugar a arrogância dos EUA de 2003, quando Roberto Zoellick dizia que o Brasil, se não entrasse na Alca, teria de “exportar para a Antártida”. Mas agora em 2011, com o Brasil e o G-20 já em posições de maior força, qual será o equilíbrio correto entre a nova realidade e a utopia? Certamente, estará em ousar ainda mais e não em se acomodar ou recuar.

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