Governo Espanhol e tratamento aos imigrantes: "Confiscaram até os filhos de Khadija"

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Confiscaram até os filhos de Khadija

Por José Palazón, Presidente da ONG Pró direitos da Infância (PRODEIN), no Toma la Palavra, Tradução: Victor Farinelli

23/07/2011

Khadija com seu filho menor (J. P.)

Talvez tenhamos em Melilla mais de 10 mil mulheres que cruzam a fronteira diariamente para trabalhar no serviço doméstico, são trabalhadoras das fronteiras, que dispõem de licença especial para exercer esse trabalho, devendo abandonar a cidade ao anoitecer. Seu estatus, por outro lado, é melhor que das outras 10 mil que também cruzam a fronteira todos os dias, para passar contrabando ou exercer outras atividades sem nenhuma regulação. Negócio puro!! São as escravas do mundo moderno!! O particular da nossa Khadija é que ela reside legalmente na Espanha, que duas de suas filhas têm nacionalidade marroquina enquanto os dois menores possuem nacionalidade espanhola e que há dois meses ela passa os dias e as noites em frente ao prédio da Prefeitura de Melilla, sem se calar, sem se submeter a ninguém, e sem medo.

Khadija sempre foi o que se esperava dela: limpa, pontual, calada, submissa, obediente, agradecida e discreta. Consciente de que qualquer outra coisa seria pior. Viu crescer suas duas meninas, nascidas em Melilla e obrigatoriamente indocumentadas, sem que pudessem ir ao colégio porque não tinham visto, algo "normal" nessa cidade. Sofreu maus tratos dos seus dois maridos durante anos, sem denunciá-los, porque ao menos, de vez em quando, traziam algum de dinheiro para sustento da família. Que outra coisa poderia fazer com quatro filhos e sua mãe doente de Parkinson, a quem também precisa atender?

Meses atrás, seu segundo marido, o espanhol com quem está casada em Marrocos mas não na Espanha, se casou com outra mulher e os abandonou… Luzes e sombras! … Já não haveria mais agressões, porém, como iria manter sua família?… Pouco depois chegou o inevitável: com seu salário de 500 euros, não pode arcar com o aluguel do apartamento onde vivia, e um dia se encontraram na rua, por decisão judicial... Na rua!!… doze anos trabalhando, criando seus filhos, aguentando a esses homens… e agora isto!

Sem saber o que havia feito mal, Khadija reuniu sua família e se dirigiu, com as malas que lhes restavam, ao Conselho de Bem Estar Social, pensando que lhes buscariam um lugar para passar a noite. Khadija não se importava em dormir na rua, mas as crianças têm somente quatro e sete anos….. Ela não sabia que no Conselho eles conheciam o seu currículo…. É a ficha de muitas mulheres que transpiram e se sacrificam para limpar até a merda que deixamos nos casarões, e não fogem da luta, além de arcar com os filhos que nós abandonamos, e sempre limpas, caladas, submissas, obedientes, agradecidas e discretas…. Era exatamente o tipo de currículo no qual se coloca a carapuça de pessoa “pícara”, ou seja: malandra, que não trabalha, que vive de esquemas, que engana para cometer fraudes e tirar proveito sem merecer…. Evidentemente, nossa Khadija, como tantas outras Khadijas, é vítima desse carapuça tão secular e interessadamente estabelecida. Carapuça que parece reger a atuação das administrações que decidem os destinos das Khadijas: majoritariamente honradas, majoritariamente submissas, majoritariamente maltratadas por seus maridos e pela administração. Majoritariamente condenadas à solitária responsabilidade sustentar a sua prole.

O Conselho ”recebeu o seu caso”, iniciaram um “período de estudos” e abriram “um expediente” para “considerar as medidas” que se poderiam tomar “como consequência da sua situação” e seu “perfil”…. Diante da urgência do caso, e como medida cautelar para evitar maiores problemas, recomendaram a ela  “que fosse viver em Marrocos” o que Khadija se negou a aceitar, porque os dois pequenos não haviam terminado o curso, porque em Marrocos eles não teriam para onde ir, e tampouco têm porquê ir. Diversas vezes insistiram na advertência que se costuma fazer a pessoas com o seu “perfil”, segundo o protocolo: teremos que lhe tirar a custódia dos seus filhos.

Isso se traduziu numa semana de abandono absoluto, de rua pura e dura sobrevivendo da caridade, cumprindo com seu trabalho apesar de tudo, levando as crianças no colégio… As crianças! Khadija lhes dizia que estavam de camping e nos primeiros dias elas acreditaram e estavam felizes. Dois meses depois, disse desconsolada que estavam na rua, porque são pobres.

Khadija e sua filha Dunia dormindo na Plaza de España, em Melilla. (José Palazón)

Durante essa semana, Khadija refletiu e decidiu lutar por seus filhos, esquecendo a submissão, a obediência, o agradecimento, o medo que supunha que deveria ter. Levando um pequeno cartaz e algumas folhas para recolher assinaturas a favor de sua causa, começou a visitar os meios de comunicação locais. Em poucos dias, conseguiu que o Conselho de Bem Estar Social enviasse a ela e sua família a uma pensão durante uma semana.

Cumprido o prazo de uma semana, foram devolvido à rua… Outra vez na rua!… Durante os dias seguintes, o Conselho de Bem Estar Social, num ato de infinito cinismo, declarou publicamente que a mulher e sua família estavam sendo devidamente atendidas. Simultaneamente, Khadija era desalojada, junto com seus filhos, da calçada em frente à Prefeitura, onde recolhiam assinaturas, poucas horas antes, havia sofrido também com a investida de policiais, que tentaram prendê-la por abandono de menores, e levar seus filho ao Juizado de Menores. A ação policial foi frustrada pela intervenção de várias associações que estavam presentes no lugar, naquele momento.

Pelo dias posteriores, a voz de Khadija se tornou um grito multitudinário, apoiado por associações e partidos políticos locais. A conselheira do Bem Estar Social, tentando lavar sua imagem, depositou em sua conta corrente a quantia de 1,6 mil euros que corresponderiam a um mês de aluguel, fiança e gastos domésticos suficientes para arcar com uma suposta casa na Rua África, em Melilla. Quando Khadija foi até realizar os trâmites para formalizar o contrato, lhe informaram que a tal moradia já estava alugada para outras pessoas e que há tempos já se havia comunicado o Conselho de Bem Estar Social que aquela casa não era para eles. Dias depois, a conselheira, em nova tentativa de desprestigiar a “mendiga briguenta”, comunicava, através dos meios de comunicação, que Khadija havia rejeitado a casa da Rua África, que lhe haviam deixado a disposição, dando a entender que lhe parecia pouco e queria exigir demais. Terminou dizendo que já não sabia como ajudá-la: tudo mentira!!!

E os 1, 6 mil euros? Essa quantia é somente a ajuda mínima concedida normalmente pela Cidade Autônoma aos desalojados, para que encontrem uma nova moradia. O valor é ridículo se consideramos o valor médio dos aluguéis e a situação atual do mercado de trabalho. Para se ter uma idéia: com uma entrada de 500 é impossível convencer um proprietário disposto a alugar uma casa. A mesma situação que vivem outras famílias despejadas que, no melhor dos casos, puderam recorrer ao auxílio-família, quando não se calam por medo ou por vergonha. A ajuda de 1, 6 mil euros aos desalojados de Melilla é inútil, inaceitável para os afetados, somente um desperdício mais da administração local. E daí? É dinheiro público!! Dinheiro que se emprega para desprestigiar a luta de uma valente mãe, que perdeu o medo e não vai deixar de lutar e trabalhar para dar o melhor que pode aos seus filhos.

Khadija está cumprindo perfeitamente com o seu trabalho. É a conselheira do Bem Estar Social quem mantém no mais absoluto abandono a todos os membros da família, abandonando também, e de forma absoluta, o que deveriam ser suas obrigações: primeiro, disponiblizar os meios para evitar a situação de risco que esta família estava sofrendo há um ano, quando Khadija passou a sustentar os filhos sem a ajuda do marido fugitivo, e depois, fazer de tudo para evitar situações extremas, como as que estão vivendo há dois meses, nas ruas da cidade.

Mas o pior dos episódios dessa trama aconteceu na semana passada. Vários policiais, que não se identificaram como tais, levaram os dois filhos de nacionalidade espanhola, e os colocaram num centro de menores, como conta o vídeo do começo do texto. Não quiseram saber de nada com a menina de nacionalidade marroquina, também menor de idade. Não comunicaram nada a ela, que foi desesperada até o Conselho perguntar onde estava os seus filhos.

Se esta ação do Conselho de Bem Estar Social tivesse acontecido em qualquer outro país da chamada “Europa civilizada” o responsável por ela não teria durado 24 horas no cargo, mas em Melilla, a responsável por isso acaba de ser reeleita como conselheira para os próximos quatro anos. Não por acaso, nessa cidade, é frequente ver os que ostentam a representação política agindo como se sentissem possuir um poder quase divino, o qual exercem de forma intransigente e absoluta, mal disfarçando o desprezo pela lei, a moral e qualquer outra circunstância que não seja a dos seus próprios interesses, a manutenção de um certo grau de apartheid, ou os negócios dos grupos de pressão transfronteiriços.

Fomos visitar a lutadora Khadija após um aviso de que seu estado havia piorado muito após a perda dos filhos. Chegamos por volta das 22h, e logo tivemos que chamar uma ambulância, porque estava num estado quase vegetativo, não conseguia falar e menor movimento lhe produzia dores por todo o corpo. Puseram uma pastilha sob sua língua, injetaram um calmante e diagnosticaram uma forte depressão por intenso estado de ansiedade. O médico disse-nos que contra isso não há pastilha que dê jeito, e que ela terá de sair por si só do fundo poço onde onde se encontra.

Com impunidade infinita! A PRODEIN lançou recentemente uma campanha de recolhimento de assinaturas no sítio Actuable.es para que Khadija recupere os seus filhos e também que o Conselho de Bem Estar Social ponha à sua disposição os meios necessários para não estar em permanente situação de risco de exclusão social, como determina a legislação espanhola.

Nota do tradutor:

Melilla é uma pequena cidade autônoma espanhola no norte da África, dentro do território marroquino, tendo com o Marrocos sua única fronteira terrestre, e conectando-se, também, com as cidades espanholas de Málaga e Almería através de um serviço de balsas. Sua população de pouco menos de 100 mil habitantes é dividida basicamente entre espanhóis e marroquinos imigrantes.

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