Bruno Garcez: o que e pra quê Jornalismo Cidadão

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Projeto de jornalismo cidadão leva notícias da periferia para a grande mídia Por: Maira Magro no Knight Center 08/11/2010

A periferia abriga um terço da população brasileira, mas é tradicionalmente ignorada pela grande mídia – a não ser em matérias nas quais predominam os estereótipos. Um projeto criado pelo jornalista brasileiro Bruno Garcez, 38 anos, contribui para mudar essa situação. Com uma bolsa da Fundação Knight, oferecida pelo International Center for Journalists(ICFJ), Bruno se licenciou durante um ano de sua função como correspondente da BBC Brasil em Washington para formar jornalistas cidadãos em comunidades carentes de São Paulo. O resultado é o Mural – um blog de notícias da periferia feito por 30 correspondentes comunitários, que cobrem suas regiões com a visão de quem vem do lugar.

Ao completar seis meses de idade, o projeto acaba de fechar uma parceria com a Folha de S. Paulo, e em breve será hospedado na seção de blogs do jornal. Um sinal positivo de que a grande imprensa começa a se abrir para outras realidades do país. Para Garcez, que também foi repórter da Folha e da BBC Brasil em Londres, a mídia vai aos poucos incorporando as transformações iniciadas no espaço online: "Com o jornalismo cidadão, surgem novas narrativas que refletem mais a diversidade", comemora. Saiba mais sobre o projeto nesta entrevista do jornalista ao Centro Knight.

Centro Knight: Qual a ideia do Mural? Bruno Garcez: É um projeto multimídia na internet que reúne textos e vídeos produzidos por jornalistas-cidadãos vindos da periferia de São Paulo, de comunidades como Capão Redondo, Jardim Ângela, Itaim Paulista, Jardim Brasília… A intenção é oferecer um olhar novo, uma visão de dentro de uma área que não está sendo contemplada pela grande mídia. Os alunos passaram por uma formação básica sobre jornalismo para se tornarem correspondentes do Mural, que também pode ser visto como um embrião de uma agência de notícias da periferia. Também estamos no Twitter e nas redes sociais.

CK: Quem são os correspondentes comunitários? Garcez: Hoje temos 30 participantes, divididos em duas turmas. São pessoas de 18 a mais de 50 anos, sendo que a média está na faixa dos 20. A maior parte é estudante de jornalismo que entrou na universidade pelo Prouni (o Programa Universidade para Todos, do governo federal, que dá bolsas para estudantes de famílias carentes). Outros são jornalistas amadores e já escrevem blogs, como o Vander Ramos, um senhor de mais de 50 anos que desde 1997 tem um site na internet sobre o Itaim Paulista(bairro da zona leste de São Paulo). Alguns são simplesmente interessados nas questões de suas comunidades, como a Telma Amorim, de 18 anos, que trabalha como telefonista, nunca foi jornalista… Todos participam do projeto de forma voluntária.

CK: Como foi a formação dos jornalistas cidadãos? Garcez: Criei uma turma em junho, hoje com 14 alunos, e outra em agosto, com 21 integrantes. Primeiro, eles tiveram aulas sobre conceitos básicos de jornalismo, além de oficinas de texto e vídeo. As aulas eram nos fins de semana, durante quatro ou cinco dias, e duravam oito horas, na sede da Folha de São Paulo, embora não tivéssemos vínculo com o jornal. Começávamos o dia lendo e analisando os jornais. Eu perguntava: como sua comunidade foi retratada? Eles avaliaram, por exemplo, a cobertura de uma ocupação da comunidade de Paraisópolis, e concluíram que alguns jornais e revistas mostravam somente a visão da polícia. Depois passamos para a produção das pautas, dos textos e dos vídeos, buscando sempre o olhar deles sobre seus bairros, seguindo a ideia atribuída ao Tolstói (o escritor russo Liev Tolstói): “seja universal, fale de sua aldeia”.

CK: Para eles, o que significa entrar na sede de um grande jornal como a Folha? Garcez: Essa é uma parte que seduz bastante. Trabalhamos em uma sala separada, com computadores. Mas fazemos um passeio pela redação e eles mencionam a vontade de trabalhar no jornal. A ideia agora é estreitar a relação com os repórteres. Além disso, o blog será em breve hospedado pelo site do jornal.

CK: Como funcionará essa parceria com a Folha? Garcez: O Mural será hospedado pela Folha.com, na seção de blogs, ao lado de outros como o Folhateen, os blogs dos correspondentes… Eu concluo minha participação no projeto este mês, e a partir daí quem vai estar à frente do Mural será a jornalista Izabela Moi, subeditora do caderno Ilustríssima. O projeto não conta com patrocínios e a Folha não entra com dinheiro, apenas hospeda o blog em seu site.

CK: Como funcionam as discussões de pauta e a produção dos textos? Garcez: Agora as duas turmas se integraram. Encontro com os alunos presencialmente pelo menos uma vez por mês, fazemos “brainstorms” de pautas, discutimos o processo de produção, as entrevistas... Fora isso, ficamos em contato online o dia inteiro, várias vezes por dia, pelas redes sociais. Também nos encontramos quando tem algum evento importante. As eleições, por exemplo, foram dias de trabalho árduo. Eles fizeram pautas muito interessantes. Um grupo registrou como os candidatos sujam as ruas, outro fez um vídeo sobre o que levava as pessoas a votarem no Tiririca. Os trabalhos também falavam sobre a realidade dos bairros, como crianças brincando em Vila Rubi no mesmo lugar onde passam os ratos, no esgoto a céu aberto, o Jardim Romano alagado pelas chuvas… Também fizemos obituários usando músicas de rap, mostrando, por exemplo, a história da morte de uma pessoa que se envolveu com crack.

CK: Que tipos de dificuldades vocês enfrentaram? Garcez: No começo, estávamos fazendo textos com cara de matéria tradicional, com caráter bem noticioso. Mas a apuração se complicava, porque as entidades oficiais não dão retorno. Então propus a ideia de fazer bons textos de observação, não necessariamente reportagens clássicas. As fronteiras do jornalismo estão se expandindo muito, flertam com o texto ensaístico, com a crônica. Esse tipo de texto é válido e às vezes tem até mais impacto que a reportagem tradicional.

CK: Como é o interesse e a participação dos alunos? Garcez: Eles têm uma avidez impressionante em participar, porque se sentem negligenciados pela grande mídia. Não têm espaço para falar sobre o que acontece em suas comunidades, e quando são retratados isso é feito geralmente de forma preconceituosa, ou seguindo algum estereótipo. Eles não querem falar só sobre violência e projetos sociais, mas também de outras coisas que dizem respeito a eles e nunca chegam ao grande veículo de imprensa. Se falam sobre o Capão Redondo, querem também mostrar a festa de reggae e dub, a obra de arte, uma grife… No começo do treinamento, temi uma baixa participação porque estávamos em plena Copa do Mundo. Claro que não coincidi as aulas com os jogos do Brasil, mas fora isso, apesar da época, os alunos estavam completamente envolvidos.

CK: Há uma demanda crescente nessas comunidades de maior envolvimento com o jornalismo? Garcez: Sim, há uma demanda grande e crescente. Vejo muita gente vinda de bairros nas periferias falando sobre os livros do Gay Talese (jornalista americano conhecido como um dos precursores do novo jornalismo).

CK: Por que você se interessou em desenvolver o projeto Mural? Garcez: Quando era repórter em São Paulo, me incomodava ver que a periferia não era retratada. A imprensa teve uma postura elitista por muito tempo e está começando a mudar. Acho que o jornalismo vai passar por uma sacudida. Com o jornalismo cidadão, surgem novas narrativas que refletem mais a diversidade, pessoas que não têm formação específica também começam a participar… O espaço de experimentação é online, mas acredito que pouco a pouco o impresso vai engolindo essas transformações.