Márcia Basseto Paes a Mino Carta sobre Romeu Tuma

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Recebo por mail a carta que Márcia enviou à Carta Capital a respeito da matéria sobre a biografia de Romeu Tuma. É um relato pessoal de quem foi presa e torturada quando o delegado estava no comando do DOPS em São Paulo.

Romeu Tuma, competente servidor do Estado e o direito à verdade

São Paulo, 03 de novembro de 2010. SR. MINO CARTA DIRETOR DE REDAÇÃO REVISTA CARTA CAPITAL Caro Sr. Mino Carta,

Antes de entrar no assunto que me motivou a escrever, quero parabenizar a toda a equipe da Carta Capital e ao senhor pelo excelente trabalho jornalístico ao longo desses anos e agradecer, particularmente, a postura séria e transparente adotada na cobertura das eleições. Acompanhei, estarrecida, os atos persecutórios da vice-procuradora-geral eleitoral Sandra Coureau e, com admiração, a forma como o senhor enfrentou e provou o quão absurdas eram as acusações.

Faço questão de frisar, ainda, que Carta Capital é a única publicação impressa que assinamos em minha casa e recomendamos, eu e meu marido, aos amigos e todos aqueles que prezam o jornalismo de qualidade.

No entanto, me chama atenção a matéria “Servidor do Estado – Romeu Tuma, exemplar responsável e muito competente” publicada na edição de 03 de novembro  em referência ao falecimento desse senhor. Sinto na obrigação de expressar o meu espanto com o equívoco de algumas informações e omissão de outras.

A matéria se refere a esse senhor como tendo “atuado no DOPS ainda sob as ordens de Sérgio Paranhos Fleury, na qualidade de “analista de informações” (com aspas na publicação), em plenos anos de chumbo, Romeu Tuma participou do combate às organizações de esquerda”.

O artigo, mais à frente, afirma ainda que “sempre se declarou contra a violência, e expressamente a proibiu desde sua nomeação à chefia do DOPS em 1977”.

Ao longo destes anos, tenho lido em vários veículos de comunicação referências equivocadas ao período que Romeu Tuma esteve no comando do DOPS. Porém, o fato da Carta Capital incorrer nos mesmos equívocos, me obriga a testemunhar a respeito.

Fui presa, junto com Celso Giovanetti Brambilla e José Maria de Almeida, na madrugada de 28 de abril de 1977. Na época éramos militantes de uma organização clandestina, trabalhávamos em indústrias metalúrgicas e morávamos em São Bernardo do Campo.  Estávamos em plena ditadura e a falta de liberdades democráticas e a supressão do Estado de Direito eram o combustível que nos impelia a fazer parte de uma organização  que lutava pelo restabelecimento da  democracia. Tínhamos eu, 20, Zé Maria, 19, e Celso, 22 anos.

No momento da prisão distribuíamos panfletos que aludiam ao 1 de maio,  data histórica de conquistas sociais pelos trabalhadores, e chamávamos a atenção ao fato do Brasil estar vivendo sob total falta de liberdades democráticas.

A prisão aconteceu por volta da 01 da manhã (distribuíamos panfletos para o turno da noite) quando fomos abordados e presos por policiais militares  que nos encaminharam para uma delegacia em Ribeirão Pires. Depois de sumariamente interrogados, fomos algemados e colocados na “gaiola” de um camburão. Os mesmos policiais militares rodaram conosco por muitas horas, dando a entender que não sabiam onde nos levar. Percebemos que havia um conflito nas orientações recebidas pelo rádio, ora nos encaminhavam ao DOPS ora ao DOI CODI. Finalmente fomos, por volda das 06h00 da manhã,  deixados no DOPS. Após rápida identificação fomos levados às salas de torturas e barbaramente torturados por vários dias.

Tivemos a incomunicabilidade decretada por dez dias e depois prorrogada por mais dez e o enquadramento na Lei de Segurança Nacional.  Nos últimos dias de incomunicabilidade foram administrados tratamentos médicos para que lesões, hematomas, feridas e outras marcas de tortura fossem amenizadas e assim pudéssemos ser apresentados aos advogados e familiares. Procedimentos que pouco valeram a Celso Brambilla que sofreu perda da audição total em um ouvido e parcial em outro,  em conseqüência das torturas e maus tratos.

A indecisão da polícia militar em saber qual seria nosso destino, se devia à uma disputa de poder que se dava naquele momento entre os dois  órgãos de repressão. Tal fato levou à que o então Diretor da Divisão de Ordem Social Sérgio Paranhos Fleury enviasse memorando de esclarecimento, com data de 30 de abril, ao “ILMO. Sr. Dr. Diretor do Departamento Estadual de Ordem Política e Social Romeu Tuma” (sic no documento em questão), relatando as atrapalhadas das polícias Militar,  Civil e Exército. Anexado ao memorando constava um relatório do então Delegado Adjunto da Divisão da Ordem Social Luiz Walter Longo (os memorandos hoje constam do Arquivo do Estado e referem-se às cópias em anexo 01, 02 e 03). O mesmo memorando culpa a confusão entre esses poderes pelo vazamento da notícia à imprensa. Fato que não é verdade, pois a denúncia à imprensa foi empreendida pelos meus companheiros de organização que denunciaram as prisões ao DCE da USP e convocaram uma mobilização contra as prisões.

A hierarquia do DOPS naquele ano de 1977 e no caso da equipe que investigou meu caso, como atestam os documentos em anexo, era a seguinte:

1.   Na base: Sr. Luiz Walter Longo - chefiava a equipe de investigadores que torturaram a mim, ao Celso Brambilla e ao Zé Maria, tendo, inclusive participado de várias seções; que se reportava ao

2.   Intermediário: Sr. Sérgio Paranhos Fleury: desceu várias vezes aos porões para ver in loco como iam os “interrogatórios” e, inclusive, ia checar, no período de tratamento, se já estávamos em condições para sermos apresentados aos parentes, que se reportava ao 3.  Sr. Romeu Tuma.

Portanto, é falsa a afirmação que Romeu Tuma “atuou no DOPS sob as ordens de Sérgio Paranhos Fleury, na qualidade de ‘analista de informações’ “. Ele era o Diretor Geral, superior a Sergio Paranhos Fleury.

É possível, ainda, resgatar nos Arquivo do Estado, a relação de presos emitida no dia 29 de abril de 1977 (documento também em anexo). São exatamente 20 presos, sendo  13 estrangeiros acusados de estarem ilegais no País, os outros 7, presos para “averiguações”, dentre os quais figurávamos eu, Celso Brambilla e Zé Maria. Este documento fora assinado pelo sr. Amadeu Marastoni, então Guarda das Prisões (carceireiro) que presenciou, inúmeras vezes, o traslado dos presos das celas para as salas de tortura (saíamos mais ou menos andando e voltávamos, a maioria das  vezes desacordados,  ensangüentados e arrastados). Pergunto:

1.   Que tipo de Diretor “muito competente” é esse que recebe de um subordinado um memorando relatando uma enorme confusão envolvendo o departamento da Secretaria de Segurança Pública ao qual dirige, o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) órgão subordinado ao Exército e a Polícia Militar do Estado e não procura saber de quem e do que se trata (quando foi formalizado esse memorando, em 30 de abril, estávamos há 2 dias sendo torturados quase que ininterruptamente)?  Obs: Romeu Tuma sempre afirmou que não sabia das torturas.

2.  Como pudemos ficar 3 meses presos no DOPS até sair a ordem de transferência para o presídio especial, sob regime de prisão preventiva, torturados por mais de dez dias, sendo que um dos presos ficou surdo e precisava de atendimento médico especializado, sem que este “Servidor do Estado, exemplar responsável” tomasse conhecimento?

3.  Que competência é esta que desconhece o que se passava em um estabelecimento não muito grande, como eram as dependências do DOPS, sem revestimento acústico nas salas de tortura, com apenas 20 presos sob sua guarda, sendo 3 acusados de “ligações subversivas internacionais com o intuito de tomar o poder” - acusação bastante séria e passou batido pelo Diretor Geral?

4.         E, ainda, se fosse verdade que Romeu Tuma era contra a violência e “expressamente a proibiu  desde a sua nomeação à chefia do DOPS em 1977” então ele não passava de um incompetente na Direção daquele Departamento, pois suas ordens de nada valiam, pois a tortura era praticada sob seu bigode.

Acrescento, inclusive, que meu advogado Idibal Piveta (esse sim competentíssimo), moveu processo quando estávamos sob regime de prisão preventiva contra  4 investigadores e o delegado Luiz Walter Longo, identificados por mim e Celso Brambilla, por prática de torturas,  e como esse “exemplar cidadão” desconhecia esse processo contra subordinados?

Estas prisões tiveram enorme repercussão na sociedade como um todo. Aconteceram inúmeras passeatas e manifestações de estudantes em todo Brasil, com repercussão internacional. Artistas promoveram uma jornada pela anistia e fim da tortura, em São Paulo, em maio daquele ano, quando todos os teatros abriram gratuitamente suas portas. Um curta produzido por estudantes da Faculdade Medicina e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – O Apito da Panela de Pressão - documentou as manifestações da chamada  ‘geração 77’.

Graças a essas mobilizações estou aqui hoje para contar essa história. Se eu e meus companheiros dependêssemos desse “Servidor do Estado”, estaríamos fazendo parte das estatísticas dos mortos pelas torturas.

Estas ponderações deduzem que, no mínimo, o sr. Romeu Tuma deveria ser acusado de omissão.

Por isso  se faz tão necessário o  levantamento dos responsáveis pelas torturas e mortes que aconteceram nos anos da ditadura militar, bem como a  revisão da Lei da Anistia. Igualmente necessário avaliar seriamente a proposta do juiz Baltasar Garzón  de criação da Comissão da Verdade, para investigar crimes da ditadura militar e a abertura dos arquivos de torturas e desaparecimentos.

Concordo também  com a idéia de que é à sociedade e ao Judiciário que competem dar impulso maior para que o Legislativo crie a Comissão da Verdade e assim assente  a primeira pedra numa reconciliação nacional verdadeira.

Muitos relutam e relutarão em abrir essa discussão, afirmando que é questão fechada. No entanto ela  está viva e respira . Foi colocada, despudoradamente, pela campanha de José Serra,  na mesa do jogo eleitoral, nas acusações contra Dilma Rousseff.  Milhares de e-mails e mensagens acusando a candidata de terrorista foram replicados nas redes sociais. Acusações que há um ano atrás jamais poderíamos supor que tivesse o aval do candidato Serra.  Muitos jovens de 17, 18, 20 anos passaram a argumentar que não votariam em terrorista sem ter idéia do que estavam falando e a que período da história do País se referiam. Estes jovens já demonstram o quão é absolutamente necessário ler essa página da nossa história para entendê-la e passá-la a limpo.

Peço desculpas por ter  me alongado tanto nas digressões a respeito desse caso. Se o artigo em questão tivesse sido publicado em qualquer outro veículo da grande mídia não teria me estendido em  tantos pormenores. Como se trata da Carta Capital, me senti na obrigação moral de fazê-lo. Atenciosamente, Márcia Bassetto Paes