ATUALIZAÇÃO: 04/05/2009 às 12:48
Como o debate se aprofundou nos comentários, resolvi indicar alguns textos pertinentes à questão para aqueles que de fato estão interessados em ampliar seus horizontes sobre a temática das cotas; dispostos, ao menos, a construir uma visão mais embasada e menos deturpada pelo simplismo e reducionismo que a mídia produz cotidianamente.
Leiam então, o artigo do professor historiador Luis F. Cerri, da UEPG: Notas críticas aos argumentos contra cotas para negros nas universidades públicas e a dissertação “Nos Alicerces do Mundo”: O dilema e a dialética na afirmação da identidade negra de Rebeca Oliveira Duarte, que me chamou a atenção para o comercial da Mastercard e me motivou a escrever este post.
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Por Conceição Oliveira
Todas as vezes que a discussão das cotas nas universidades entra em pauta eu pergunto aos meus interlocutores: Por quantos médicos negros você já foi atendido/a?
A sociedade brasileira (ainda tão conservadora e com tanto medo de mudanças democráticas) não precisava de mais um comercial para estimular seus preconceitos e conservadorismo, especialmente num momento de votação das cotas no Senado.
O efeito subliminar junto ao público desta propaganda é perverso: reforçará a falácia da meritocracia e contribuirá para estimular ainda mais a reação conservadora bastante organizada no expectro representando no manifesto dos 113 intelectuais contra as cotas.
Rebeca Duarte do Observatório Negro, que escreve a análise que reproduzo no texto a seguir, e os demais comentaristas do movimento negro (José Ricardo, Dilemar Monteiro entre outros) estão cobertos de razão: a nova propaganda da Mastercard defende uma visão elitista, e equivocada sobre a meritocracia e traduz a luta de intelectuais e educadores do movimento negro pela democratização das universidades como força bruta, como algo ilegítimo, reduzido a um ringue.
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Na peça publicitária a escolha do adversário musculoso negro para se contrapor ao esforçado garoto que passou na medicina não foi gratuita. Para Mastercard, o vestibular é ringue e o menino branco, franzino e aplicado é herói, pois lutou contra um negro 'oportunista', que buscava levar vantagem, impondo-se por meio da 'violência das cotas'. O menino branco tem família estruturada que o apóia sempre e, juntamente, com ele experimentam o sabor da vitória. Esta tem de ser comemorada em grande estilo, pois não tem preço: foi conquistada a partir do 'mérito', do 'esforço intelectual'.
Curioso que Mastercard não informa que a grande maioria dos alunos negros, musculosos ou não, não têm acesso às apostilas, notebooks, boas escolas. Curioso também é a ausência de qualquer reflexão para o fato de que nos vestibulares dos cursos concorridos e valorizados como os de medicina, poucos negros até bem pouco tempo atrás sequer se atreveriam a disputá-los. No 'ringue da medicina' os principais competidores sempre foram aqueles com acesso às boas escolas, às apostilas, aos cursinhos e notebooks. Fossem ou não franzinos, brancos e de classe média certamente eram e continuam a ser em sua maioria esmagadora.
Seria pedir demais que se os publicitários da campanha da Mastercard que desejam contar histórias reais de 'sucesso' ao menos representassem a realidade da desigualdade tal como ela é?
Eu sugeriria a eles que visitassem apenas uma escola de periferia da cidade de São Paulo e visitassem o Santa Cruz, o Bandeirantes ou qualquer outra escola aonde o ringue da competição já se inicia nos pré-vestibulinhos destas instituições, entre os branquinhos franzinos ou não. Seria de grande utilidade que os publicitários da Mastercard fizessem uma breve analise demográfica por cor, para descobrirem quais grupos étnico-raciais estão em maioria nestes lugares sociais. Mas como não farão, porque não há o menor interesse de informar o público alvo a que se destina a campanha, é melhor que nós próprios façamos a leitura a contrapelo da peça publicitária elitista, conservadora e preconceituosa.
Como argumenta Carla Akotirene** a propaganda da Mastercard: "evidencia e aclama como melhor o branco, aquele que está preparado na cognição, porque envidou seus próprios esforços para tal, e isso ‘não tem preço’. Avisa que se for pelo uso da força simbólica, presente no imaginário popular, o negro já perdeu, a exemplo das cotas "que vem verticalmente", mas não tem consistência teórica e ideológica para ganhar na correlação de forças com os setores da sociedade. Logo, se qualquer branquinho franzino, no ringue deste mecanismo político em exercício, atingir os pontos vitais da pessoa negra, ela irá cair, porque a grande técnica é Estudar, Saber e consequentemente Vencer."
O desserviço da propaganda da Mastercard para a implementação da política de cotas e outras ações afirmativas de recorte socioeconômico e étnico-racial tem um preço altíssimo: negativiza todos os esforços daqueles que realmente querem democratizar este país.
Fiquem agora com a brilhante análise de Rebeca Duarte, especialista em política de cotas e membro do Observatório Negro:
Por Rebeca Oliveira Duarte*
Sempre gostei de observar os comerciais brasileiros; nada pelos produtos em si, mais pela perspectiva artística que a propaganda brasileira costumava ter. Em certos períodos, tive muitos contragostos, especialmente à época em que as cervejarias desbundaram em propagandas sexistas, mal-feitas e repetitivas, até que, felizmente, a justiça decidiu - por pressão das feministas - pôr os limites necessários à liberdade de expressão. Afinal, democracia não justifica agressão e discriminação contra mulheres; pelo contrário, requer a garantia de serem tutelados os direitos fundamentais de todos os segmentos sociais.
Bem, mas o que eu quero dizer é sobre a perspectiva artística das propagandas, e a respeito de como algumas delas marcam os telespectadores. Em Pernambuco, quem tenha mais de trinta anos não tem como não lembrar com um sorriso os jingles das Casas José Araújo, nos idos dos 1980, ou a cantiga doce de uma marca de açúcar cristal. Mais recentemente, em nível nacional, uma dessas campanhas bem sucedidas é a da Mastercard, que associa o consumo às coisas não-consumíveis, seduzindo quem assiste geralmente pela afetividade. Pois bem. A última das versões da campanha "Não tem preço" espantou-me com um exemplar bem "sutil" do racismo brasileiro, daqueles que poucas pessoas "conseguem" perceber. Ou querem perceber.
Trata-se de um jovem franzino branco lutando no ringue com um homem negro grande e forte. Do lado do negro, a altura e os músculos; do lado do branco, a sua força está num computador, em livros e, o que quer nos levar a pensar a propaganda, pela aplicação intelectual do jovem branco. Ao final da luta, o negro desaba enquanto o jovem ergue os braços e o narrador finaliza: "passar no vestibular: não tem preço".
Muito interessante como a propaganda descreve exatamente o pensamento comum referente ao "lugar" do negro na perspectiva racista brasileira, principalmente em relação à educação. Se de um lado o negro aparece superior fisicamente, com sua "força bruta", muscular, o branco o supera pelo "mérito" individual da intelectualidade e, por isso mesmo, derruba o primeiro para ocupar um lugar de privilégio - a universidade. Assim é a idéia geral que povoa o imaginário brasileiro, principalmente em relação às cotas.
A propaganda da Mastercard parece ter sido escrita por aqueles intelectuais de gabinete que criticam as cotas como uma ameaça à meritocracia individual, elitista e racista; quem sabe, foi mesmo. Não duvidaria. Afinal, a igualdade racial é um preço muito caro que alguns segmentos da sociedade não querem pagar, para não terem de ver o negro e a negra se defenderem dos golpes que historicamente receberam. O medo, tão grande, desse "jovem branco franzino", é da reação; de ver-se contra-atacado, golpeado e jogado ao chão, humilhado, assim como fez ao outro.
Mas erra quem vai nesse caminho. Em nenhum momento, a defesa das cotas quer colocar as coisas como uma luta de boxe, no qual o "vencedor" deixa o outro derrubado na lona, vencido. Pelo contrário. Queremos sim que o vestibular saia do ringue e que a universidade seja um campo democrático, sem disputa ou concorrência - tão-somente de conhecimento. E, necessariamente, da socialização deste conhecimento.
Queremos que a educação não tenha preço, nem pagantes, nem excluídos. Sem os nocautes da injustiça social e do racismo, que fazem a pessoa negra pagar sempre muito caro por sua existência. O racismo causa, inclusive, um estrago que não tem valor que compense. Só a consciência social - e essa sim, não tem preço, apesar de ser ainda tão cara em nossa sociedade. *Rebeca Oliveira Duarte Observatório Negro Rua do Sossego, 253 - sala 02 - Boa Vista Recife-PE - CEP 50.050-080 F: 00 55 81 34231627/94211435 observatorionegro@gmail.com
**Carla Akotirene: Coordenação do Fórum Nacional de Juventude Negra/Ba; Articulação Brasileira de Jovens Feministas; Campanha Reaja ou Será Mort@