Desde os primeiros anos do ensino fundamental, os estudantes aprendem que as orações poderão ter sujeito oculto. A oração com sujeito oculto é aquela em que o sujeito da ação não está explícito e sua identificação só é possível graças à pessoa do verbo.
Também é nos primeiros anos do ensino de Jornalismo que o futuro profissional aprende que o sujeito do fato é elemento fundamental da redação jornalística para a devida compreensão dos acontecimentos pelos consumidores de informação. É na faculdade que se aprende a famosa pirâmide invertida, pela qual o repórter deve responder a seis perguntas básicas ainda nas primeiras linhas do seu texto. Quem?, O quê?, Quando?, Onde?, Como? e Por quê?
Na cobertura do recente escândalo de corrupção verificado no âmbito do governo do Distrito Federal, apelidado pela imprensa de "mensalão do DEM", pelo qual o governador do Distrito Federal e pessoas bem próximas a ele são suspeitas de desviar R$ 60 milhões, o Correio Braziliense, principal diário da Capital Federal – com uma tiragem estimada em mais de 200 mil exemplares – parece ter preferido seguir as normas das escolas fundamentais do que as rotinas jornalísticas. No escândalo da Caixa de Pandora, Arruda virou sujeito oculto.
Nome só aparece na 33ª linha
As denúncias, sob apuração da Polícia Federal, Ministério Público Federal e Superior Tribunal de Justiça, apontam para José Roberto Arruda, único governador de estado dos Democratas, como líder de um esquema de corrupção que coletava dinheiro junto às empresas fornecedoras do governo do Distrito Federal (GDF) para ser repartido entre membros da base aliada na Câmara Distrital.
A documentação divulgada pela justiça seria inequívoca: o acórdão do STJ afirma que Arruda teria sido gravado por um auxiliar quinta coluna orientando sobre como fazer a partilha das propinas arrecadadas. Entretanto, nas páginas do Correio Braziliense de sábado (28/11), Arruda vira sujeito oculto e o leitor do jornal fica sem saber exatamente o que aconteceu. Na chamada de capa, o Correio estampa: "GDF e Distritais são alvo de investigação".
Com esta manchete, o Correio não só esconde quem supostamente seria o comandante do esquema de corrupção, bem como os beneficiários, como também dilui a responsabilidade por toda a estrutura do GDF e do parlamento local de Brasília. O governo do Distrito Federal possui dezenas de secretarias e 174 mil servidores. Por sua vez, a Câmara Distrital possui 24 parlamentares. Estariam todos eles envolvidos e sob suspeição policial? Quem lê a chamada de capa do Correio subentende que sim, que todo mundo está envolvido no "mensalão do DEM", quando na verdade as investigações alcançam dez pessoas: Arruda, seu assessor de imprensa, seu chefe de gabinete, o chefe do gabinete civil, os secretários de educação e de relações institucionais (este, responsável pela delação) e quatro parlamentares distritais.
O assunto volta a ser tema na capa e em mais duas páginas internas do caderno "Cidades". Quatro repórteres foram escalados para fazer a cobertura. O nome do governador Arruda só aparece na 33ª linha, na segunda coluna do texto. Diz o texto: "Durval gravou, em 21 de outubro deste ano, uma conversa com o governador José Roberto Arruda, sobre o destino de R$ 400 mil em poder do então secretário."
Autor de ação moralizadora
O texto se recusa a informar que o governador é o alvo central da operação Caixa de Pandora comandada pelo Ministério Público Federal com autorização do Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, o foco das investigações, segundo o Correio, são pessoas jurídicas e não físicas. Pela ordem: a Câmara Distrital, o governo do Distrito Federal e o Tribunal de Contas do DF, quando na verdade o alvo dos 29 mandatos de busca e apreensão são as dez pessoas citadas anteriormente.
O noticiário é rico em fotos, oito ao todo, mas todas no caderno "Cidades" e nenhuma na capa do jornal. Arruda também não aparece em nenhuma delas. Nem mesmo numa foto de arquivo. Talvez o Correio Braziliense não tivesse nenhuma no departamento fotográfico. Mas o arquivo fotográfico foi pródigo em localizar uma foto datada de 09/01/2003, na qual aparecem lado a lado o ex-governador Joaquim Roriz, desafeto de Arruda, e Durval Barbosa, secretário de Relações Institucionais do governador do Democratas e responsável pelas denúncias e gravações secretas. Na legenda da foto, que ocupa quase que um quarto de página, o Correio alerta aos leitores que Barbosa atuou como presidente da Companhia de Desenvolvimento do Planalto na gestão Roriz e que nesta condição foi condenado por improbidade.
Nas páginas do Correio Braziliense, o governador Arruda só vai deixar de ser sujeito oculto numa matéria onde ele aparece como autor de uma ação moralizadora, ao determinar o afastamento dos integrantes do primeiro escalão de seu governo citados no suposto esquema de pagamento de propinas.
A "rádio corredor"
É bastante curiosa esta técnica de cobertura do Correio Braziliense que subtrai o sujeito da ação, deixando-o oculto, e torna difuso o envolvimento dos suspeitos. Que paradigmas jornalísticos devem nortear tal técnica profissional, quando sabemos que o CB tem por hábito fazer denúncias bem explícitas contra o governo federal e o Congresso Nacional? A forte presença publicitária do GDF nas páginas do Correio teria algum efeito anestesiante?
A chamada "rádio corredor" da imprensa brasiliense alerta que haveria um acordo entre o GDF e o principal jornal da capital para que não se fale mal do governador. É difícil dizer se a "rádio corredor" está bem informada – possivelmente, não –, mas o comportamento editorial do jornal, que almeja ser um referencial da imprensa nacional, no principal escândalo político-policial dos últimos anos na cidade deixa a desejar. O Correio parece não respeitar o famoso contrato entre imprensa e leitor que o obriga a trazer a verdade e toda a verdade sobre os fatos. Tudo que o ele deixou de escrever foi fartamente divulgado pela imprensa local e nacional e até pelos portais de assessoria de imprensa da justiça. A postura do CB revela que o seu leitor deve ligar seu desconfiômetro ao lê-lo, pois no mínimo ele estará correndo o risco de não estar recebendo a totalidade dos fatos, quiçá de estar sendo deliberadamente enganado.