Anti-cotas, ou a fraternidade de um certo sociólogo global

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Maria Adelina Braglia É paulista, bibliotecária e vive em Belém. É analista de projetos senior da Fundação SEADE, mas, cedida ao Governo do Estado do Pará. Coordenou no período de 2000-2006 o Programa Raízes, criado para atender comunidades quilombolas e povos indígenas no território paraense.

Comentando artigo de Demétrio Magnoli Por: Maria Adelina Braglia - 13/9/2009

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.” (Caetano Veloso) Imitando o sociólogo Demétrio Magnoli, que sob o título O dom de iludir (sem aspas) usou o samba de Caetano, sei que não vou acompanhar plenamente o raciocínio do que foi o “samba” do seu artigo, publicado em Tendências/Debates (FSP, 9/9/2009), contestando artigo de Boaventura de Sousa Santos na mesma coluna em 26/8. Na verdade, o artigo do professor Magnoli acabou parecendo um comemorativo libelo a favor da exclusão das cotas do Estatuto da Igualdade Racial. Mas, vou tentar.

Fica mais fácil fazê-lo seguindo a estrutura do discurso do sociólogo que sem dados, sem números, sem história, embalado sempre pela sua grossa (o contrário de fina) ironia, busca fragmentar Boaventura de Sousa Santos reduzindo-o a um intelectual da “nova esquerda”. A mim parece que com isto Demétrio Magnoli pretende ser reconhecido como o arauto “nova direita”.

Vamos então ao discurso e à fé do arauto da direita: usando como exemplo o filho do Ministro Joaquim Barbosa como hipotético beneficiário das cotas, o articulista afirma que ele ocuparia, com menos pontos, a vaga de um filho de trabalhadores com renda familiar de três salários mínimos. Neste ponto, é comovente destacar como a noiva direita, quando se trata de implodir a política de cotas, lembra-se sistemática e patrioticamente dos filhos dos trabalhadores.

Supondo que assim fosse, e daí? O filho do Ministro Joaquim Barbosa teria direito a uma vaga pela política de cotas. E estaria na universidade, ainda assim, com direito legal e legítimo de um programa, uma política, diferente dos filhos dos Matarrazzos, dos Gerdaus, dos Diniz sempre ocuparam e ocupam vagas nas universidades públicas, sem que o Professor Demétrio tremesse nas bases por causa disto. Porque para eles, prevalece o direito divino de serem brancos.

Ressalvo que – para evitar o reducionismo periférico - que nada tenho contra os filhos de Matarazzos, Gerdaus e Diniz na universidade pública. Apenas estou aqui dançando o samba como o professor Demétrio entoa e seguindo seu raciocínio: o privilégio da branquitude nasceu conosco, os brancos e os negrinhos que se coloquem no seu devido lugar. Elogie-se até o professor Magnoli pois democraticamente, quando se trata de políticas afirmativas para os negros, ele não perdoa nem os “negrinhos de elite” que, segundo ele, Du Bois justificava com a elite dos talentosos 10% e, pelo visto, com um incrível acerto histórico para o pan-africanismo norte-americano, pois ali está, impávido, Barak Obama.

O Professor Magnoli vai buscar até o Ministro Gilmar Mendes – merecidamente mais nova direita do que ele – e depois de dois parágrafos nada comoventes sobre a revolução Francesa, e a tríade fraternidade-igualdade-liberdade, premia-nos com a seguinte pérola: “A raça é uma fraternidade de sangue: uma irmandade inventada a partir de descendências imaginárias. Dividir o Brasil em raças oficiais, o pressuposto dos sistemas de cotas raciais, equivale a optar por esse tipo de fraternidade, em detrimento da “irmandade dos cidadãos”.

Não nos esqueçamos, no entanto, que o professor Magnoli recomenda que não se justifique as cotas só pelo conceito de fraternidade – mas, reparem que ele já nos permite pensar nisto! – pois a burguesa revolução francesa aliou-o à liberdade e à igualdade dos cidadãos. Aliás, como o Professor estava um pouco confuso quando escreveu seu artigo, usou isto como ironia pelo fato da esquerda usar este discurso burguês. Mas não vou me alongar aqui, pois, recorrendo também a um samba, este de Noel Rosa, aviso: “ ...o maior castigo que eu te dou, é não te bater pois sei que gostas de apanhar...”

Então tá, Professor Magnoli, vamos concordar, pelo menos esta única vez. Gostei da sua explicação. A melhor, talvez, que alguém já produziu para justificar a política de cotas. Mais honesta e brilhante do que a que propor que elas sejam cotas de reparação ou de ação temporal para superar parte do fosso do acesso de negros e brancos ao ensino superior, ou paliativo pra dar um “corte por cima” na excrescência de termos 50% de negros no país e menos de dez por cento das nas universidades, etc. e tal e mais, muito mais poética. E, como diz Paulo César Pinheiro, “O importante é que a nossa emoção sobreviva. E a felicidade amordace essa dor secular...”

Fica estabelecido, ao menos para mim, que as cotas são uma política de fraternidade, com um pequeno adendo: não é fundamentada numa descendência imaginária. É fundamentada numa ascendência real de homens e mulheres privados de todo direito, do mais elementar – a vida – ao mais “sofisticado” - o acesso à educação em todos os níveis. Ascendência gravada literalmente a ferro e a fogo na memória dos negros e na desmemória de alguns brancos. Axé, Monsieur Magnoli. Cotas pela fraternidade é meu novo lema. Adelina Braglia