"A única lembrança que Obama tem do pai é daquele mês com o pai no Havaí. O encontro gerou tantas angústias quanto prazeres, mas o pai, apesar de ausente, pesava, e, de vez em quando, escrevia cartas com aforismos e conselhos e um que até hoje Obama não conseguiu decifrar."Um dia", escreveu ele, "como a água que encontra seu nível, você vai encontrar uma profissão adequada".
O pai não sabia de nada." (Lucas Mendes, "Obama, o negro e o sonho")
A citação acima é o final do texto do Lucas Mendes, publicado hoje pela BBC-Brasil, (clique aqui para lê-lo na íntegra).
Todas as vezes que esta tchurma, incluindo a BBC, toca a falar de racismo e relações étnico-raciais, invariavelmente, resvala em seus próprios preconceitos. E a frase enigmática escolhida para encerrar o final do texto de Mendes é um exemplo disso.
Durante todo o texto do jornalista do Manhattan Connection há a tentativa de nos convencer que Obama, embora tenha sido alvo de inúmeros preconceitos raciais, está em um nível pós-racial. Eu entendo a necessidade da tchurma da democracia racial de querer estabelecer a época da biopolítica pós-racial, mas estamos longe de as discussões se distanciarem da questão da raça, infelizmente.
É impossível para um negro, qualquer negro, esquecer-se de que é negro, pois a todo momento sempre terá alguém que o lembre de sua condição, como o faz Mendes, não entendendo o grau do nível esperado pelo pai de Obama para o futuro de seu filho.
Em suas análises, Mendes e outros se esquecem de separar Obama candidato/político e Obama sujeito de sua própria história.
Um negro com o projeto político e a visibilidade de Obama precisava deixar claro que seria um presidente para todos os Estados Unidos. Se não fizesse isso e colocasse no foco da campanha a questão racial ele não teria a menor chance.
Condição semelhante foi imposta a Lula na campanha de 2002: ele passou a afirmar que era candidato a governar um país cheio de diferenças raciais, sociais, econômicas, culturais, regionais e que para isso deveria ter um projeto político de governo para todos. Lula, diferente de três de seus principais pares na América Latina-- Chavez, Evo e Correa--, não se declara um presidente socialista, no máximo reafirma ser um presidente progressista.
Carataras do rio Iguaçu (montagem)
Voltando à fala final de Mendes, quando o pai de Obama refere-se em seus aforismos à imagem do nível da água jamais pensaria em um rio raso. Ele era orgulhoso e consciente demais de suas capacidades e habilidades, inclusive para governar, para achar que o filho não alçaria vôos altos.
O pai de Obama chegou a assumir cargos importantes na política queniana, mas sua personalidade forte e a crença na competência pessoal como pré requisito para administrar, passando ao largo das diferenças étnicas e seus recorrentes usos políticos, levaram sua carreira à ruína. Obama sabe que se desconsiderar a questão racial tão profundamente arraigada nas mentes do Ocidente pode ter um final ainda mais trágico que o do seu pai.
Talvez tanto tempo vivendo em Nova York tenha feito o jornalista brasileiro se esquecer das poderosas 275 quedas d'agua rio Iguaçu.
Um pouquinho de associação geográfica também lhe faria bem para refletir sobre a metáfora paterna do futuro presidente dos EUA. Mendes poderia, por exemplo, lembrar-se da geografia do país onde nasceu Obama pai e percorrer o território queniano de Mombassa, na costa oriental, banhada pelo Índico, até o lago Vitória. Lá encontraria as Nyahururu Falls que um explorador europeu do XIX tentou rebatizar com seu próprio nome: Thomson's Falls.
(Nyahururu Falls, Quênia)
Isso possibilitaria a Mendes não esquecer do poder que a água tem de ocupar e transpor todos espaços e barreiras, talvez até lhe permitiria aprender a lição importante que agricultores, engenheiros civis e profissionais da defesa civil sabem como ninguém: é a água que decide quando atingiu o seu nível.
O pai de Obama sabia tudo.