************
MÍDIA & ÉTICA Por Ivo Lucchesi em 4/3/2008 | |
É lamentável, mas não menos necessário, que a presente escrita tenha de retornar a um tema cujo foco crítico possa parecer ao leitor falta de imaginação inventiva da parte do articulista. Contudo, não posso eximir-me de manifestar intenso repúdio a quatro fatos que, em menos de um mês, supostos renomados jornais doaram ao público um teor abaixo do deplorável. Em ordem cronológica, refiro-me às seguintes edições: Valor Econômico (19/2), O Globo (25/2), Jornal do Brasil (27/2) e Folha de S. Paulo (28/2). A perda da medida Desde a dramaturgia de Ésquilo e Sófocles, na antiga Grécia, e, adiante, com as precisas observações de Aristóteles em sua Poética, sabemos que o "herói trágico" incorre na "desmedida", na incontida ânsia de perseguir a verdade ou a defesa radical do que considera justo. Em razão do excesso do que julga ser uma virtude, o "herói" ultrapassa a barreira e cai na "desmedida", do que decorre sua dimensão trágica. Dando um salto de milênios, da tragédia grega à mídia contemporânea, logo perceberemos a inadaptabilidade dos fundamentos de uma época para a outra. Uma vez relatados os quatro fatos, o leitor compreenderá que o conceito de "desmedida" inerente ao perfil do "herói trágico" em nada tem a ver com a insensatez com a qual o jornalismo brasileiro parece estar em parceria. Vamos, pois, aos fatos. Fato 1 No seleto jornal Valor Econômico (19/2/2008), constava a seguinte matéria: "Carteiras que estavam pouco concentradas se destacaram". Eis que, na terceira linha do segundo parágrafo, lê-se a seguinte frase: "Acontece que o índice despirocou por conta da forte alta de dois papéis /.../". Como? Sim, exatamente essa é a redação. Quem o escreveu não se sabe, pois a matéria não está assinada. Todavia, o aval do editor foi dado, seja por haver lido, seja por haver ignorado. Nas duas opções, não há como saber qual delas mais depõe contra o editor. A questão é: por que optar pelo grosseiro vocábulo ("despirocou"), em lugar de "desequilibrou", "enlouqueceu", "ensandeceu"? E mais: esse jargão em texto de análise econômica, num jornal destinado a um público-receptor mais exigente? É de estarrecer. Fato 2 Na primeira página de O Globo (25/2/2008), o foco visual conduzia o leitor a uma frase na qual era realçada a "dança do créu na vitória do Flamengo" e, abaixo, a foto dos jogadores, com a coreografia da dança. Lembro que, na manchete de O Globo, "créu" não continha aspas, negrito ou itálico. Frise-se, ainda, que, na coluna, à esquerda do leitor, constavam duas notícias de densidade dramática: uma, referente a denúncias de tortura na polícia; outra, relativa a mais uma vítima assassinada, na Barra da Tijuca, por haver parado em sinal. A justaposição de tais fatos só revela a total perda de respeito à dimensão humana e ao sentido do que querem dizer cultura, notícia e ética. Tento, por minutos, imaginar-me um familiar da vítima assassinada, vendo e lendo, ao lado, a "dança do créu". Sinto muito: isto é inaceitável; é repugnante e deveria ser repelido por todo e qualquer jornalista que sabe quanto é belo e digno o ofício diário dessa profissão. Um jornalista, Sr. Editor de O Globo, é, acima de tudo, um "vigilante dos acontecimentos", em favor dos cidadãos. Um jornalista, por isso, não se pode converter em "insensível promotor de eventos", modelo no qual se banaliza a tragédia humana e entroniza-se a vulgaridade. Fato 3 O Jornal do Brasil (27/2/2008) elegeu a seguinte manchete: "Lula: `Porrada não educa!´". Supostamente, a frase teria sido pronunciada pelo presidente da República, num discurso, durante uma visita às obras da ThyssenKrupp CSA, um complexo siderúrgico em Santa Cruz, no Rio de Janeiro. O caso em questão está revestido do mais alto grau de deformação. Vale lembrar ao leitor que a manchete destacava, entre aspas, a frase "porrada não educa" como tendo sido aquela pronunciada pelo presidente. Indo à matéria, a frase é: "Se porrada educasse, bandido saía da cadeia santo". Tudo bem: o presidente poderia ter evitado o uso do termo "porrada"? Sim, poderia. Mais grave, porém, é o jornalista que transforma, em manchete, uma frase entre aspas, impronunciada. E mais: a frase que, efetivamente, foi dita contém nível de argumentação diferente da "secura grosseira" transformada em manchete. Houve, portanto, intenção em expor negativamente a figura do presidente? Tudo indica que sim. No mesmo evento, o presidente também declarou: "Não posso errar porque, quando encerrar o mandato, não vou a Paris ou Londres" – frase à qual o JB deu relevância na página A3, embora, na mesma página a manchete fosse, outra vez, "Para Lula, porrada não educa". Que é isto? Será jornalismo? O leitor avalie. Fato 4 Diferentemente do tom das três situações anteriores, esta, publicada na página C4 do caderno "Cotidiano" (Folha de S.Paulo, 28/2/2008), é da ordem do grotesco. Em matéria assinada por Vinícius Queiroz Galvão, o leitor era convidado pelo seguinte título: "Justiça suspende demissão por excesso de flatulência". No tocante ao presente fato, diferentes considerações se mostram necessárias. Dentre elas, situam-se: 1) o perfil insólito do fato em si; 2) a decisão do processo; 3) a cobertura jornalística. Em relação ao primeiro, cabe a indagação: o fato mereceria registro num jornal que se pretende de primeira linhagem na imprensa nacional? Para melhor situar o leitor, reproduzo a matéria, respeitando a paragrafação original: "A demissão por justa causa de uma funcionária que, segundo a empresa, excedia-se em flatulên cia no ambiente de trabalho foi pelos ares. Juízes da 4ª. Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo decidiram pela readmissão da funcionária e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais. Para basear o voto, o relator do processo, juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros, recorreu a um artigo em que o médico Drauzio Varella afirmava que a emissão de gases intestinais não é doença. `O organismo tem que expandir os flatos, comum a todos. Nem sempre pode haver controle´, diz a decisão. O juiz cita ainda uma passagem do livro Jô Soares `O Xangô de Baker Street´, em que o imperador Pedro II soltava gases na corte." O fato em si, a decisão judicial, a fonte na qual o relator fundamentou a sentença e a matéria jornalística são recortes primorosos para compreendermos a reinante mediocridade brasileira. Ela tem a propriedade de revelar ao leitor a rede de sutilezas com a qual se monta uma "peça de horrores humorísticos". Por partes, tentemos seguir o roteiro: 1) o ridículo do litígio entre empresa e funcionária, por conta da "flatulência". De um lado, a inabilidade da empresa e contornar o fato grotesco; de outro, a insensibilidade da portadora do problema, em não buscar soluções medicinais; 2) a atuação da justiça que, convocada a pronunciar-se, fundamentou sua decisão num artigo do "médico-midiático global" que, por sua vez, com tantos argumentos científicos, recorre a uma fonte "literária" (?), igualmente global (o "escritor" Jô Soares), a fim de justificar o direito de a funcionária expelir gases impunemente, já que o imperador também o fazia. Será que todos os "atores" desse risível roteiro (empresa, funcionária, juiz e médico) enlouqueceram? Por fim, acresça-se ao elenco o jornalista, relator da matéria. Já imaginaram se os quase 7 bilhões de habitantes do planeta liberassem, livremente, seus "gases intestinais", em função de errados hábitos de alimentação e de educação? O ar e a convivência seriam insuportáveis. E mais: se os quase 7 bilhões de habitantes do planeta aprenderem a lição de que, liberando seus gases, será recompensado pelo ganho da quantia equivalente, em moeda nacional, a R$ 10 mil. Conclusão: flatulência também é investimento. Como arremate, a figura do jornalista (e do jornal), em, sem nenhum tom humorístico ou irônico, narrar o "acontecimento" com a mesma postura de quem oferece ao leitor uma matéria de política, economia, ou seja lá do que for. Quatro faces do horror O painel, em quatro faces, aqui exposto indica o cenário de horrores em que nos encontramos. A questão é sabermos se ainda tudo pode ficar pior. Só o tempo revelará. Uma vez mais, reitero que as raízes da deformação do caráter brasileiro não têm a ver nem com presidentes eleitos nem índices econômicos (inflação, crise, ou crescimento e desenvolvimento). O problema não é político e, menos ainda, econômico. O fator que, no pano de fundo, desfigura e fragiliza o vigor da nação diz respeito ao modo como cada cidadão se relaciona com a cultura e o conhecimento. Nesse interstício, tem responsabilidade o modelo vigente do sistema midiático (impresso e eletrônico), considerando que, há décadas, é sobejamente sabido o apego da majoritária população ao recorte oferecido pela mídia. Que tal, num esforço em prol do soerguimento da inteligência nacional, a mídia realinhar o sentido de responsabilidade social, redefinindo o arco de suas importância e prioridade? A barbárie evolui bem mais rapidamente do que se supõe. Se chegarmos ao estado da irreversibilidade, nem a mídia sobreviverá. [Texto concluído em 2/3/2008] |