A expressão "ativismo de sofá" geralmente é usada para designar de forma pejorativa quem se dedica a denunciar o que lhe parece incorreto ou escrever sobre o que lhe parece correto, utilizando as redes sociais, conversas de bar, um blog, um podcast, ou uma pequena faixa erguida no meio de uma marcha.
Os 30 anos da Constituição Cidadã e a pauta racial ontem e hoje (ou de Benedita a Marielle)
Por Natália Neris, convidada especial*
Em 1986 o coletivo de mulheres negras cariocas Nzinga produziu didaticamente um informativo que explicava para seus leitores/as negros/as a dinâmica do processo constituinte e os/as alertava para a importância do voto em pessoas que conhecessem os problemas do povo:
“Constituinte é uma palavra que hoje está na propaganda da televisão, nos discursos das autoridades, nas conversas de botequim, ou seja, está nas ruas. Ainda assim é pouco entendida. E é por isso que vamos falar um pouquinho sobre o que ela significa. (...) A Constituição é a lei mais importante de um Estado (no sentido de País). É ela quem indica como serão feitas e cumpridas as outras leis. Ela é tão importante que estabelece os direitos e deveres de cada cidadão e até onde o Estado pode interferir nas liberdades de cada um. Isto significa que a Constituição reflete a vontade do cidadão. Daí que um governo que se diz representante do povo não pode governar sem uma Constituição. Agora, o mais importante é saber quem elabora, isto é, quem faz a Constituição, para saber se os nossos desejos e nossas esperanças cabem dentro dela. É ai que entra a importância da CONSTITUINTE que é a reunião de pessoas escolhidas para fazer estas leis. É impossível nos dias atuais, reunirmos toda a população do país para fazer as leis. Então temos necessidade de delegar poderes aos deputados e senadores, em nosso nome, farão a Constituição. Para isto eles são chamados de representantes do povo. E, como representantes, tem a obrigação e o dever de nos consultar, antes de elaborar, votar ou rejeitar uma lei. (...) Na medida em que os deputados e senadores representam o povo, é importante que os candidatos eleitos para ocupar tais cargos tenham um compromisso real com a comunidade que dizem representar. E é por isso que defendemos a necessidade de nossos representantes serem escolhidos entre os grupos de mulheres, de negros, de índios, dos sindicatos, das associações de moradores e de favelas, das igrejas e etc., porque só assim teremos leis que garantam realmente os nossos direitos, já que serão feitas por pessoas que no dia a dia estão discutindo, questionando e levantando os problemas conosco.
Apesar dos esforços de atores do Movimento Negro nesse momento da história do Brasil (recordemos: uma ditadura que negava a existência de uma questão racial no país) elegeu-se apenas 11 representantes negros do total de 559 membros do Congresso, ou seja, 2% dos Constituintes (Pires, 2013 apud Santos, 2015a).
Deste total apenas 4 declaradamente se diziam pertencer ao que se denominou à época de “Bancada Negra”: Edimilson Valentim; Carlos Alberto Caó; Paulo Paim e Benedita da Silva.
A Constituição Brasileira que neste ano completa 30 anos é comumente chamada de “Constituição Cidadã” por um motivo específico: o modo como se deu seu processo de elaboração. Totalmente descentralizado, sem texto-base, a escrita da Constituição durou um pouco mais de um ano e contou com sete etapas - sendo que nas primeiras foi possível a participação popular por meio do envio de emendas, sugestões e participação em audiências públicas[1] em uma das 24 Subcomissões estabelecidas .
Dos quatro parlamentares negros, apenas uma era titular da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias: Benedita da Silva, mulher que sempre se apresentou como negra e favelada . Sua participação nesse espaço revelou compromisso com as demandas do Movimento Negro estabelecidas em congressos regionais prévios e no Encontro Nacional “O Negro e a Constituinte” realizado em 1986. Uma das audiências públicas contou com a participação de sua assessora Lélia Gonzalez (além de outros 20 importantes ativistas).
Nos espaços em que foi garantida a fala dos militantes a denúncia das desigualdades educacionais e no mercado de trabalho eram evidentes; falou-se também do controle dos corpos da população negra via esterilização das mulheres e violência policial, tratou-se de acesso à justiça, de acesso à terra. Entre as demandas, a obrigatoriedade do ensino de história
da África e afro-brasileira; o estabelecimento de cotas e ações ‘compensatórias’ no mercado de trabalho; a atenção integral à saúde da mulher, a unificação das policiais militar e civil, o julgamento de crimes cometidos pela polícia pela justiça comum, o fim da casa de detenção de menores de idade, a criminalização do racismo e o reconhecimento e titulação de terras remanescentes de quilombos.
Os debates travados entre Benedita da Silva e os militantes do Movimento Negro e parlamentares em audiências públicas revelam inúmeras tentativas de silenciamento, minimização das questões e inclusive discursos intolerantes por parte de parlamentares.[2] No entanto, sabemos que apesar da enorme resistência, algumas demandas foram incorporadas: encontramos dispositivos relativos à proteção ou promoção da cidadania da população negra principalmente nos Artigos 3º (que prevê que um dos objetivos fundamentais da República é promover o bem de todos, sem discriminação), 5º (imprescritibilidade e inafiançabilidade do crime de racismo), 7º (sobre trabalho e proibição de diferenças salariais com base na raça), 215º, 216º e 242º (que versam sobre educação e cultura) e o 68º no ato das disposições transitórias (que trata do reconhecimento e titulação de terras de remanescentes de quilombos).
A história dos anos 1990, 2000 e 2010 é a marcada por tentativas de regulamentação desses dispositivos/direitos e luta por sua efetiva implementação e, atualmente mais do que isso: a garantia de que não se vá perdê-los (os direitos quilombolas são emblemáticos nesse sentido).
Estamos em 2018: Benedita da Silva segue sendo uma deputada negra em exercício e estatísticas apontam que o percentual de candidaturas com seu perfil na Câmara dos Deputados somam 0,39% do total.
Em âmbito local essa estatística é um pouco maior 3,9%. Tínhamos 32 mulheres negras eleitas do total 811 vereadores do Rio de Janeiro até a última quarta-feira, 14 de março. Temos 31 agora. Marielle Franco que também se descrevia como mulher negra e favelada cumpriu um pouco mais de um ano de mandato. Foi assassinada. Foi vítima dos muitos aspectos do racismo institucional que denunciava.
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Fundação do Movimento Negro Unificado e protesto contra a morte de Robson da Luz - Teatro Municipal de SP (1978)[/caption]
De 1988 a 2018 são 30 anos de regime democrático no qual a pauta racial entrou timidamente no campo institucional no Brasil. É fundamental pontuar que, de fato, desde a primeira Constituição, nenhuma linha de todo arcabouço legal brasileiro que se refere aos direitos da população negra está inserida sem a pressão ou influência da luta desse povo, de fora das instituições a pautá-las, e internamente.
A brancura de nossas instituições jamais existiu sem temer a nossa voz e a presença de nossos corpos. E nós tememos sua violência desproporcional e histórica, dos discursos de negação de nossa identidade ao nosso extermínio, há 518 anos.
Mas atuamos e somos plurais (ao contrário do que o racismo tenta propagar). A história da luta anti-racista no Brasil é a história das estratégias múltiplas (de jornais e informativos independentes à discursos oficiais em plenárias, passando por tantas outras formas, inclusive artísticas).
As constantes tentativas de silenciamento (por meio da violência simbólica e física), a supressão de pontos fundamentais de nossas demandas, uma estrutura política que favorece os mesmos parlamentares e seus descendentes não permitindo que passemos de 5% do total de representantes políticos e diante do recente extermínio de uma mulher negra jovem que travou uma batalha institucional, tornam óbvio que não apostaríamos somente no Legislativo para garantir justiça e direitos à nossa comunidade. O olhar retrospectivo e o diagnóstico atual trazem dor. Mas nós entendemos de democracia: nós fundamos Palmares.
*Natália Neris é pesquisadora. Doutoranda em Direitos Humanos pela USP, Mestra em Direito pela FGV, Bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela USP. É também colaboradora da página Preta e Acadêmica.
Referências:
[1] Estima-se que dez mil postulantes franqueavam diariamente a entrada no Parlamento no período de realização da Assembleia Nacional Constituinte (PILLATI, 2008) e que nove milhões de pessoas tenham passado pelo Congresso no período de sua realização (ROCHA, 2013).
[2] Reconstituo o teor destes debates em Santos (2015b).
NZINGA INFORMATIVO. Rio de Janeiro, p. 1-8, jul./ago. 1988. Disponível em: https://goo.gl/dYS4tv
PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do Racismo entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos. Rio de Janeiro. 274 p. Tese (Doutorado em Direito) - Departamento de Direito da PUC-Rio, 2013.
ROCHA, A.S. Genealogia da Constituinte. Do autoritarismo à Redemocratização. Lua nova. Revista de Cultura e Política. Dossiê “Constituição e Processo Constituinte”, nº88, 2013. Disponível em: https://goo.gl/ZRytKE
SANTOS, Ellen Mendonça Silva dos. Movimento de mulheres negras no rio de janeiro: amefricanidade, interseccionalidade e a implementação de políticas públicas na constituinte de 1988. Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, 2015a. Disponível em: https://goo.gl/urRafH
SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. São Paulo.. Dissertação (Mestrado em Direito) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2015b. Disponível em: https://goo.gl/CVvyKL
*Foto em destaque: Ricardo Moraes/Reuters

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