“Mas ele não me bate”

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Ela diz. E eu entendo. Não sei se é ela mesma quem nega a própria dor, ou se outra pessoa, talvez A outra pessoa, faz isso por ela. Ela não percebe que ele não precisa tocar num só fio de cabelo dela para esmigalhar seu espírito, para destroçar sua alma. Ela não vê que, mesmo sem nem se aproximar, ele a está intimidando quando levanta a voz e estufa o peito em direção a ela no meio de uma discussão. Ela não se vê encolher, muitas vezes literalmente contra a parede. Não percebe que, quando "só" isso não basta, ele esmurra e chuta objetos inanimados como um gorila que bate no peito diante de um adversário. A mensagem é cristalina, ainda que não verbal: “Submeta-se! Ou eis o que farei com você”. Se alguém nos ameaça e nós recuamos, isso significa que a pessoa não é violenta? A ameaça é uma violência em si. “Mas eu sei que ele jamais me machucaria”, ela o defende, defendendo a si mesma da vergonha que sente por se permitir humilhar assim. E eu sei que ela sabe que isso não é bem verdade. Sua mente racional tem para si muito claro que ele é inofensivo, mas existe nela um instinto que reconhece a iminência da agressão e a faz retrair-se toda vez que ele grita, olha para ela com ódio, bufa, cerra os punhos. E isso basta para que ela perca as palavras, não se imponha, não o confronte. Para que ela fique ali, paralisada pelo temor. Para que ela engula e introjete, uma a uma, as coisas horríveis que ele lhe diz. “Mas ele não é assim o tempo todo”, ela fala, mais para si mesma que para mim. E eu sinto ainda mais raiva dele. Porque é tão mais fácil quando eles são escrotos o tempo todo e com todo mundo. Daí, nunca tem, nem fora, nem dentro da gente, uma criatura especial para dizer que vale a pena manter o relacionamento. Raramente é assim. Pessoas agressoras ainda são pessoas, humanas, como todas as outras. Elas podem ter momentos de ternura, podem ter qualidades, virtudes. Mas nada disso torna menos violentas as suas violências quando elas ocorrem. Nada disso diminui o trauma que seus atos e palavras causam em suas vítimas. As flores que vêm depois não apagam as dores que vieram antes. As desculpas não apagam as culpas. As memórias felizes permanecem, como contas coloridas e brilhantes ligadas num colar confuso por uma linha de medo e sofrimento. Mas as contas com o tempo começam a ficar mais e mais esparsas e a gente começa a não ter mais como não ver entre elas aquele fio feio que se alonga cada vez mais. Por quê? Por que ela fica? Talvez ela já tenha passado por isso antes, talvez tenha crescido com alguém que a tratava assim e agora, diante de outra pessoa que age dessa forma, ela volte a ser aquela criança espancada por berros e perdigotos raivosos, esquecida de seu tamanho adulto, de suas pernas capazes de carregá-la para longe dali. Talvez, na cabeça dela, ela já tenha sido horrível com alguma pessoa e este seja o carma dela, uma retribuição que ela deve pagar, por algum motivo cósmico e inexplicável. Talvez ela tenha crescido aprendendo que o papel de uma mulher é cuidar da pessoa com quem se relaciona, mesmo que essa pessoa lhe faça mal, aliás, especialmente se essa pessoa lhe fizer mal; que faz parte da paixão fazer mal, fazer chorar e doer. Talvez ela sinta que merece ser punida. Que não é adequada e deve ser punida até que se torne aceitável. Algo assim. Tantas explicações possíveis para ela estar ali, diante de mim, murcha, esvaziada de si mesma. Uma boneca humana recheada pelas vontades de outra pessoa, um saco de pancadas, ainda que não físicas. Uma mulher formidável que hoje olha para si mesma apenas com repugnância. E ela continua lá. Por que eu estou aqui, então? Porque eu sei que é do isolamento da vítima que o abusador se alimenta. E é por isso que eu jamais a abandonarei, ou a afastarei com recriminações e julgamentos. Não faz diferença o motivo por que ela fica nessa relação. Não faz diferença há quanto tempo ela está nela. O que fará diferença será o momento em que ela sair dela. E cada momento que chega pode ser esse momento. Não a condeno pelo momento que já passou (isso ela já faz o bastante). Aproveito o momento presente para abraçá-la e acolhê-la. Lembrá-la de que não está só. E vou nutrindo esperanças pelo momento que ainda virá.