Sede da Dops-Santos nunca foi no prédio da antiga Ciretran – Por Gines Salas
Do golpe de 1964 até a sua extinção em 1983, conforme referendam os jornais, órgão de repressão em Santos se manteve no segundo andar do Palácio da Polícia
Sim. Estávamos enganados. E eu disse estávamos, na primeira pessoa do plural. O imóvel da antiga Circunscrição Regional de Trânsito (Ciretran) nunca foi sede da Delegacia de Ordem Política e Social de Santos (DOPS Santos).
Há poucas semanas, em dada madrugada, sonhando com um possível doutorado, encontrei na internet o artigo que a professora Lídia Maria de Melo escreveu no jornal A Tribuna, publicado no dia 01 de abril deste ano. Nele, a jornalista e professora universitária, filha de um sindicalista que esteve preso na DOPS Santos (Palácio da Polícia) e no navio Raul Soares em 1964, questionou a veracidade da versão bastante difundida na região: a de que o endereço “Avenida Conselheiro Nébias, nº 584”, local do casarão da antiga Ciretran, foi sede da DOPS Santos. Lá, supostamente, sindicalistas teriam sido presos e torturados.
A versão é defendida pelo presidente de uma das organizações estudantis mais antigas e tradicionais do país, bem como por pesquisadores e militantes admiráveis dos movimentos sociais. Lembro inclusive de ser citada ao microfone por um ouvinte aleatório de uma palestra ministrada no auditório da Unisantos em 2014, quando eu ainda era aluno do curso de licenciatura.
Só que a professora Lídia não é qualquer pessoa: é uma referência, autora do livro “Raul Soares, um navio tatuado em nós”. E eu aprendi com as porradas da vida a questionar as fontes, com direito a uma dura banca de qualificação no mestrado. O incômodo dela se tornou meu incômodo. Chamei-a no privado, trocamos mensagens e, a partir de então, partilhamos sobre diversos assuntos, desde memória, pesquisa e até cultivo de plantas. Resolvi então arregaçar as mangas e investigar.

Pesquisei em dois acervos: o do Arquivo Público do Estado de São Paulo - onde estão disponibilizados os documentos produzidos e coletados pela vigilância política - e o da Hemeroteca Digital Brasileira. As listas de endereços das seções de informações da Baixada Santista não deixam dúvidas: durante os anos de exceção, apenas o endereço do segundo andar do Palácio da Polícia Civil de Santos - Avenida São Francisco, nº 136 - é identificado como a sede da DOPS Santos, que também foi conhecida como 4ª Delegacia. A DOPS Santos, aliás, ao contrário do que muitos imaginam, é um órgão anterior à ditadura militar e esteve no segundo andar desde a inauguração do prédio, em 1956. No local inclusive, foi encontrado tardiamente o acervo do órgão, em 2010.

E o que apontam os jornais da época? Bem, o endereço “Avenida Conselheiro Nébias, nº 584” tornou-se sede da Delegacia de Trânsito em 1959, chamada de 5ª Delegacia. O imóvel mudou de função em 01 de janeiro de 1968, quando passou a abrigar a 2ª Delegacia e a agora nomeada Ciretran migrou para a área térrea do Palácio da Polícia e depois, para a Rua Bahia, voltando para o casarão da Conselheiro somente em 1985, onde esteve nos trinta anos subsequentes. Entre 1970 e 1978, após reestruturação promovida pela Secretaria de Segurança Pública, o casarão foi endereço do chamado 3º Distrito Policial. Do golpe de 1964 até a sua extinção em 1983, conforme referendam os jornais, a DOPS Santos se manteve no segundo andar do Palácio da Polícia. O principal objetivo daquela especializada, que era investigar crimes políticos e sociais, não deixou de ser exercido na Avenida São Francisco.

Pronto, aí você me pergunta: “Ok, Gines. Mas de onde tiraram que o casarão da Conselheiro Nébias abrigou a DOPS Santos?”.
Aí é que tá. A afirmação de que o imóvel abrigou a DOPS Santos é uma meia verdade: entre 1978 e 1985, o local foi sede do Setor de Estrangeiros. Assim como o Setor de Explosivos, tratava-se de um setor subordinado à DOPS, que realizava serviços burocráticos, como a emissão de vistos. Contudo, passava longe de ser um setor de repressão – ainda que, como praticamente todo órgão do período, trocasse informações com seções de vigilância. Hoje em dia, suas atribuições são exercidas pela Polícia Federal.
Me parece um tanto improvável que, em plena distensão e no auge da campanha pela anistia, período em que a ditadura estava amplamente desgastada pelos escândalos envolvendo violência, que o imóvel em questão, abrigando um setor burocrático da DOPS, tenha sido palco de prisões, torturas e interrogatórios. Para fundamentar o meu argumento, cabe uma digressão.

O período da ditadura militar em Santos teve suas especificidades. Famosa por seu expressivo movimento operário desde o final do século XIX, os golpistas temiam que a cidade, onde Goulart possuía uma importante base de apoio, fosse foco de resistência ao regime. Por esse motivo, Santos foi palco de intensa repressão imediatamente após o golpe de 1964, quando a cadeia pública ficou lotada e o Raul Soares foi ambiente de horror. Estrangulado o sindicalismo santista, com o passar dos anos, a brutalidade do regime foi menor se comparada a outras regiões do país. Não significa que não tenha existido, mas torna a possibilidade de um centro clandestino de prisões e torturas funcionando no final da década de 1970 algo remoto. Mas nada me impede de ser contestado com a devida apresentação das fontes - algo que, particularmente, não encontrei.
Como afirmou a professora Lídia em seu texto, é bem possível que, entre 1967 e 1978, durante o período em que foi uma delegacia comum da civil, pessoas tenham sido vítimas de algum tipo de violência no local. Afinal, episódios de agressão policial eram comuns na época e infelizmente são recorrentes até hoje no Brasil pós-redemocratização. Mas isso não o torna sede da DOPS.
A proposta desse texto não é atacar essa ou aquela organização, esse ou aquele jornalista, sindicalista ou militante. Mas contribuir para o debate, pelo bem da cidade e da memória. Não se pode atribuir a um local um papel que ele não teve.
*Gines Salas é professor da Educação Básica e mestre em História pela Unifesp, com pesquisas voltadas ao progressismo e conservadorismo católico e a relação Igreja e Estado no Brasil.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.