Crônica de Cidinha da Silva conta a história de um encontro com o 'homem azul do deserto', como são conhecidos os integrantes do povo Tuareg, durante uma viagem pela Bahia
Por Cidinha da Silva*
Bodô, meu irmão, descobri sua origem. Você é Tuareg! Tuareg do Vale do Jequitinhonha.
Como descobri? Por acaso estelar. Pera que te conto. Escrevi o livro do Manu, um menino que pescava estrelas no céu do Máli, do Burkina Faso, do Níger, de algum lugar por ali. Coisa que para nós, de Minas, gente que não tinha mar antes da lama em Mariana, era a invenção mais natural do mundo.
Pois bem, o desejo de Manu pescar estrelas foi inspirado por lenda do povo Tuareg, que diz que os Homens Azuis do Deserto, como são conhecidos, quando se perdem nas areias profundas do Norte da África, espetam uma estrela com a lança e ela os guia no caminho de volta.
Tá! Você não entendeu ainda por que você é um Tuareg e ainda menos por que eles são azuis. Calma, moço! Pescaria exige paciência. Já explico. É o seguinte, os Tuareg são um povo nômade que vive na região onde se passa a história do Manu. Eles usam aquela túnica comprida de mil e uma utilidades que protege do calor escaldante do dia e do frio cortante das madrugadas no deserto. A túnica é azul e quando o usuário transpira, umedece a tinta, uma espécie de anil. A cor impregna a pele, deixando-a com tom azulado. Por isso, há séculos, eles são conhecidos como os Homens Azuis do Deserto.
Agora, você é um Tuareg porque encontrei outro Tuareg que é idêntico a você. A mesma pele acobreada, os mesmos lábios de café, os cílios grandes e espessos que dão um charme especialíssimo ao olhar. Sério, mano! Vocês parecem gêmeos.
Quer saber como conheci um Tuareg se nunca estive pelo Norte da África, não é? Foi numa das Áfricas brasileiras. Viajávamos de Salvador para a Boa Morte, em Cachoeira, e nos cruzamos na rodoviária. Do deserto para o Paraguaçu, brinquei.
Uma amiga comum nos apresentou. A princípio rolou uma tensão. Eu e minha velha mania de tentar identificar de onde as pessoas são pelo sotaque. O dele tinha uma coisa rascante em algumas sílabas que lembrou Bernd, amigo alemão. Vixe! O homem virou bicho. Alemão, eu? Não deixei por menos. E os alemães negros? Não sabia da existência deles? Antes que começássemos a brigar, a Silvane jogou água e disse que ele era Tuareg. Rapaz, foi uma emoção enorme e de imediato me lembrei de você.
Baixamos as armas, conversamos um pouco. Eu falei do Manu e disse que só havia visto homens Tuareg em cima de camelos imensos na televisão e talvez por isso imaginasse que eles fossem muito altos. Mas até na altura se parecem contigo, Bodô. São pequenos, do nosso top, os Banto.
Por fim, perguntei de que país ele era e veio a resposta que só poderia vir de um africano de pensamento descolonizado. Eu sou Tuareg! Meu passaporte é do Máli.
De quebra compreendi o imponderável. Do que falo? De você, meu amigo. De suas escolhas futebolísticas. Homem preto, mineiro, sertanejo, tamborzeiro, de esquerda e não é atleticano. E por mal de todos os pecados é cruzeirense. Só pode ser reminiscência da origem Tuareg. Saudações alvinegras, menino celeste!
(*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage
(Foto: Flickr/foto_morgana)