Este é o cenário de maior instabilidade interna no Iraque, desde a declarada vitória contra o Estado Islâmico em julho de 2017. Ao caos interno soma-se a tentativa do atual governo em lidar com as crescentes tensões regionais e a crise entre o Irã e os EUA.
Por
Rodrigo Amaral
Desde o início do mês de outubro de 2019, o Iraque tem sido abalado por dias de protestos, conforme milhares de jovens se manifestavam em diferentes partes do país contra a corrupção, o desemprego e os maus serviços públicos. Esses protestos ocorreram em vários subúrbios de Bagdá, como Sadr City e Shaab, e outras cidades iraquianas como Karbala, Nasiriya, Diwaniya e Basra. Em resposta, as forças de segurança pública do país usaram de medidas agressivas de contenção aos protestos em confrontos com manifestantes que
mataram mais de 100 iraquianos e deixaram mais de 6 mil feridos. Somado a isso, o governo impôs toques de recolher na capital, Bagdá e em outras cidades para tentar impedir os protestos a ganhar força. Relatos locais, também apontam para
o corte das redes de internet no país.
Em Genebra,
a porta-voz do Alto Comissáriado da ONU para os Direitos Humanos, Marta Hurtado declarou sua preocupação com a forma como o governo iraquiano está respondendo a esses protestos: “Estamos preocupados com os relatos de que as forças de segurança usaram munição real e balas de borracha em algumas áreas e também dispararam cartuchos de gás lacrimogêneo diretamente contra os manifestantes”.
Nos protestos é comum observar demandas como: mudar a constituição, mudar o sistema parlamentar para presidencial e retirar Abdul-Mahdi como Primeiro Ministro. Muitos manifestantes em Bagdá e em outras cidades do sul do Iraque estão carregando
cartazes de Abdul Wahab al-Saadi como substituto ideal de Mahdi, ex-oficial das forças de combate ao terrorismo do país, que se tornou um herói nacional por seu papel na luta contra o ISIS.
Paralelamente, Também aparecem
manifestações com slogans anti-Irã e queima de bandeiras iranianas espalhando-se entre manifestantes. Como consequência disso, o Irã fechou duas passagens de fronteira com o Iraque na quinta-feira (03/10). As passagens de fronteira entre Khosravi e Chazabeh estão entre as principais passagens usadas pelos peregrinos xiitas que deixam o Irã para os santuários sagrados xiitas no Iraque.
A sucessão de protestos vem num contexto de tensão regional, já que
na última semana de setembro no Iraque foi relatado um ataque a uma base das Forças de Mobilização Popular (FMP) apoiadas pelo Irã. Essas FMP abarcam quase 40 grupos paramilitares xiitas somando cerca de 160 mil combatentes que foram reconhecidos como legítimos pelo “Comitê de Mobilização Popular” do Ministério do Interior iraquiano em junho de 2014 no contexto do combate ao Estado Islâmico. Entretanto, em julho de 2019 o governo do Iraque emitiu uma ordem que visava colocar as frações da FMP apoiadas pelo Irã sob o controle de Bagdá, com a ajuda dos Estados Unidos na identificação de elementos que serão desmobilizados.
Depois disso, o primeiro-ministro iraquiano,
Mahdi, pela primeira vez, acusou Israel de estar por trás de uma série de ataques às bases de forças de mobilização popular desde julho de 2019. Em outro evento recente, dois foguetes atingiram um local próximo da embaixada dos EUA na Zona Verde em Bagdá, com alguns relatos sugerindo que eles foram emitidos de uma área no sul de Bagdá, onde estas forças FMP próximas ao Irã dominam. Os incidentes ocorreram em meio a tensões aumentadas entre os dois aliados do Iraque, o Irã e os EUA, levantando alertas de que o Iraque poderia ser pego no meio de uma disputa entre os dois.
Entretanto, essa insatisfação popular frente ao governo executivo iraquiano não é novidade. Entre janeiro de 2016 e agosto de 2019,
ocorreram no Iraque 96 revoltas populares (riots) e 693 protestos civis, das mais diversas origens. Suas localidades coincidem com as atuais cidades com largas ondas de manifestações populares.
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Protestos e Revoltas populares (riots) no Iraque entre Janeiro de 2016 e outubro de 2019[/caption]
Fonte: Database da ACCLED
Apesar da especulação de que os protestos sejam espontâneos (contra corrupção e o alto desemprego), existem outros elementos que podem indicar caminhos para compreender a instabilidade política no país. A insatisfação popular é algo tradicional na história recente do Iraque. Dados sobre uma alta quantidade protestos e revoltas (
riots) populares no Iraque datam desde a ocupação liderada pelos EUA e Inglaterra em 2003.
Crescimento da insatisfação popular desde a ocupação de 2003
Em março de 2003 os EUA lideraram uma coalizão militar que invadiu o Iraque e removeu Saddam Hussein do poder. Diante desse cenário o Conselho de Segurança da ONU determinou aos invasores que formassem uma coalizão de autoridade provisória que teria como objetivo reconstruir o Iraque. Por 14 meses, a coalizão transformou as bases políticas, econômicas e jurídicas do Iraque. A constituição iraquiana de 2005 marcou a consolidação desse novo regime político, transformando o Iraque em um país federal e democrático, conforme o objetivo da agenda dos EUA. Entretanto, isso não significou estabilidade política.
Durante a presença de autoridades da coalizão no Iraque,
estima-se que as forças insurgentes tenham crescido em 5 mil insurgentes de 2003 a meados de 2004. Mesmo após a saída da administração da coalizão, mas a manutenção de militares dos EUA no país estimava-se que ainda existiam entre 12 e 16 mil insurgentes no país, assim, uma taxa crescente de resistência.
Mesmo após a transição das forças ocupantes para um governo composto por iraquianos, a presença de grupos insurgentes permaneceram no Iraque. A insurgência iraquiana não era um movimento unido liderado por uma liderança com uma única visão ideológica. Em vez disso, envolveu ex-partidários do Partido Baath (Social Árabe) de Sadam Hussein, iraquianos ressentidos com a ocupação estrangeira, extremistas islâmicos estrangeiros e domésticos e elementos do crime organizado para sustentá-los economicamente.
Entre 2003 e 2013, calcula-se que
quase 185 mil mortos em confrontos no Iraque entre civis, combatentes da força multinacional, insurgentes,
contractors de empresas militares privadas e membros do exército iraquiano.
Posteriormente, a ascensão do Estado Islâmico (ISIS) a partir de 2013 mostrou as fraquezas do sistema de defesa nacional iraquiano que havia sido reformado pelos ocupantes. O ISIS representou o maior inimigo do Iraque pós-ocupação, tendo em seu ápice em 2015 quase 15 mil combatentes (quase metade deles no território iraquiano) e tendo para si uma grande quantidade de território iraquiano, principalmente no oeste e norte do país.
Além da enorme crise causada pelo DAESH desde 2013, a instabilidade também veio da retomada do interesse do Curdistão pelo Iraque pela independência. Desde os anos 1960, o movimento independente do Curdistão existe, alternando momentos de conflito e paz com os árabes no Iraque. Foi somente em 1992 que o Curdistão iraquiano se tornou uma região com relativa autonomia quando, após a Guerra do Golfo, o governo do Baath removeu completamente seus militares da região, permitindo que a região funcionasse de forma autônoma.
Em setembro de 2017, a região curda do Iraque realizou um referendo sobre a independência. Os resultados indicaram que 93% apoiaram o “sim”, representando um forte valor simbólico, mesmo que não fosse vinculativo. O referendo também colocou um velho debate sobre as fronteiras entre o governo regional curdo e o resto do Iraque. Curdos iraquianos reivindicaram uma área territorial ampliada que cobriria uma parte da cidade de Mosul e todo o Kirkuk, ambos não oficialmente controlados pelos curdos desde a luta contra o Estado Islâmico. Ambas as cidades são relevantes para o desenvolvimento econômico do Iraque. Mosul (5ª maior cidade iraquiana) foi reconquistada em julho de 2017 com a participação ativa do Peshmerga contra o DAESH, “assegurando” a cidade desde então. Kirkuk concentra a segunda maior reserva de petróleo do Iraque, atrás de Basra, no sul do país.
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Situação do controle político no território iraquiano em outubro de 2017[/caption]
O referendo não só representou outra questão sobre as crises políticas do Iraque, mas também teve um impacto sobre o processo eleitoral - o grande símbolo da democracia e participação popular - que era esperado em setembro de 2017.
A conturbada eleição parlamentar de 2018
No Iraque, a quinta eleição aconteceu em maio de 2018 após o adiamento - causado pelas consequências do conflito com o DAESH e pelo referendo popular pela independência do Curdistão iraquiano. A eleição também foi adiada porque a maior coalizão sunita do Iraque, Muttahidoon (United for Reform), pediu mais seis meses de atraso para permitir que os eleitores deslocados voltem para suas casas.
Quase 6 milhões de pessoas foram deslocadas desde a ascensão do DAESH em 2014 e cerca de 2,6 milhões permaneceram deslocadas no início de 2018, contexto das eleições.
Nas últimas eleições nacionais,
apenas 44,5% dos possíveis eleitores registrados votaram. Indicando a menor participação eleitoral desde a invasão liderada pelos EUA em 2003. As eleições decidiram os membros do Conselho de Representantes – órgão legislativo que elege o Presidente da República e seus adjuntos, incluindo o Presidente do Conselho de Ministros, estes por sua vez nomeiam um Primeiro Ministro por unanimidade - com a vitória de
Sadr Sairoon Aliance, uma coalizão política xiita liderada por Muqtada al-Sadr e composta por seu próprio partido e outras seis legendas, que conquistaram 54 das 329 cadeiras do Parlamento. Após a contagem, alguns grupos defenderam o cancelamento das eleições, alegando falsificação na contagem de votos e falta de presença popular nas eleições devido à instabilidade de várias regiões após a ocupação de cidades iraquianas pelo Estado Islâmico.
Neste contexto, o Supremo Tribunal Federal do Iraque decidiu rever os votos de áreas onde os resultados foram contestados. Este processo de recontagem, como disse o porta-voz da Comissão Laith Hamza, foi tomado por todos os gestores das assembleias de voto e escritórios onde houve queixas, com a presença de representantes da ONU, blocos políticos, bem como representantes dos candidatos. Este cenário ressalta a desconfiança e a instabilidade política no país, evidenciadas no mecanismo mais importante da democracia, as eleições gerais.
Entretanto, o mais notável é que mesmo com o declínio do ISIS datado desde julho de 2017 e o “esfriamento” dos movimentos de independência na região autônoma do Curdistão (iraquiano), casos de ações civis violentas permanece uma constante no Iraque.
Mais de 1.100 casos de violência civil perpetrados por grupos armados civis (não identificado) foram registrados, mesmo após o enfraquecimento do ISIS. Independentemente das suas origens, esses dados evidenciam a insatisfação popular com a situação política iraquiana desde a reconstrução do país em 2003.
Todavia, não apenas fatores endógenos explicam a instabilidade política atual do Iraque.
Continua (o segundo texto desta série será publicado em breve).