A debandada já começou. Milhões de pessoas de todo o mundo estão abandonando o WhatsApp e aderindo a outros aplicativos de mensagens, como o Telegram e o Signal.
Isso porque o WhatApp começou, na última semana, a notificar os usuários informando sobre mudanças na política de privacidade. A partir de 8 de fevereiro, todos aqueles que querem continuar usando o aplicativo terão que aceitar a nova política que envolve o compartilhamento de seus dados com o Facebook, dono da plataforma desde 2014. A única exceção são usuários do Reino Unido e União Europeia, região que possui organizações de proteção de dados que fecharam acordos com as empresas.
O aplicativo garante que o conteúdo das mensagens trocadas pelos usuários é criptografado de ponta a ponta e não pode ser acessado. Com a mudança na política, entretanto, passarão a ser compartilhados com o Facebook e empresas parceiras dados como informações de registro e número de telefone, endereço de IP, dados de transações e pagamentos, informações sobre o dispositivo e sobre a interação entre usuários. Esse compartilhamento de dados serviria para aprimorar o recurso de compras online do Facebook.
De acordo com o sociólogo Sergio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e especialista em redes digitais, o objetivo da mudança do WhatsApp é aprimorar a "modulação de comportamento" dos usuários para fins comerciais e políticos.
"A vigilância para fins comerciais será ampliada de um modo que nenhum minuto da vida de uma pessoa não esteja sendo medido e avaliado pelos sistemas e modelos de predição e modulação de comportamentos", alerta Amadeu.
"Não podemos aceitar que elas [empresas como WhatsApp e Facebook] possam coletar tantos dados e metadados das pessoas e de populações quase inteiras. Dizer que cabe às pessoas decidirem se consentem ou não com essa coleta é completamente enganoso", completa o especialista.
Confira abaixo, em três perguntas e respostas objetivas, quais serão os impactos desta mudança na política de privacidade do aplicativo.
Fórum - Qual acredita que seja o real objetivo do WhatsApp e Facebook ao impor essa mudança?
Sergio Amadeu - O Facebook quer concentrar a informação dos usuários das plataformas que domina para aumentar o conhecimento que possui sobre cada pessoa e assim poder formar melhores amostras de perfis pessoais a serem vendidas para as agências de marketing comercial ou político. Seu potencial de extração de padrões que já é gigantesco aumentará. Zuckerberg e seu grupo de empresas coligadas possuem a rede social com o maior número de usuários, o Facebook, possuem o aplicativo mais utilizado de mensageria instantânea, o WhatsApp, e estão capitalizando a rede de compartilhamento de fotos e vídeos, o Instagram. Assim, terão maior poder de vendas de publicidade e maior potencial de modulação de comportamentos. Provavelmente lançarão novos serviços de persuasão e poderão também se tornar um grande polo de comércio eletrônico. O Facebook tal como o Google, Amazon e Microsoft têm ímpeto monopolista.
Fórum - Qual será o impacto dessa mudança para o usuário? Sua privacidade estará, de fato, mais exposta? Mudará algo de forma significativa para a exposição que já estava submetido?
Sergio Amadeu - O usuário estará ainda mais fragilizado. A rede de relacionamentos de cada pessoa, de cada família e de cada empresa que se estruturou em torno do WhatsApp será agora cruzada com outros registros. Eles utilizarão os metadados do WhatsApp para extrair valor das redes de interação de cada usuário e alimentar os algoritmos que tentarão encontrar padrões nas frequência as pessoas se relacionam. A vigilância para fins comerciais será ampliada de um modo que nenhum minuto da vida de uma pessoa não esteja sendo medido e avaliado pelos sistemas e modelos de predição e modulação de comportamentos.
Fórum - As mudanças no Whatsapp não valerão para a UE e Reino Unido, devido a acordo com organizações de proteção de dados da região. Seria possível o Brasil conseguir proteger os dados de seus cidadãos com a legislação que temos sobre o assunto?
Sergio Amadeu - A Agência Nacional de Proteção de Dados, criada recentemente, teria a competência para evitar essa concentração de informações pretendida pelo Facebook. Se aplicarmos a Lei Geral de Proteção de Dados podemos considerar excessiva e perigosa a ação do Facebook. Todavia, a agência foi montada com indicações de confiança de Jair Bolsonaro. Não me parece que Bolsonaro e seus seguidores tenham alguma preocupação legítima com a privacidade de com a proteção dos dados coletivos. Eles só se interessam por acobertar suas operações particulares.
Está mais que evidente que as plataformas adquiriram um poder comunicacional e econômico descomunal. Não podemos aceitar que elas possam coletar tantos dados e metadados das pessoas e de populações quase inteiras. Dizer que cabe às pessoas decidirem se consentem ou não com essa coleta é completamente enganoso. A legislação de proteção de dados europeia e a brasileira é um avanço, mas tem uma falha. Essa legislação gira em torno do consentimento individual. Insisto que existem pressões corporativas, sociais e culturais que anulam completamente o efeito do consentimento individual. Falta uma legislação que proteja dados coletivos, dados que fragilizam as gerações futuras, dados que enfraquecem a soberania dos países. Enfim, precisamos começar por proibir essa ação pretendida pelo Facebook. Caso a ANPD se cale, ainda podemos contar com o Ministério Público.